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Sobre a importância da contextualização das ciências

Sobre a importância da contextualização das ciências

Maio 01, 2018 - 07:07
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"A ciência brota de nossos livros universitários, como que em passes de mágica, induzindo-nos a crer que Newton tirou de sua cartola o conjunto de leis que sintetizaram toda a ciência de milênios. Este abracadabra faz surgir diante dos alunos, pronta e reluzente, a relação F=ma, antes mesmo que a maçã de Newton toque o chão! É uma visão mágica de ciência que nos fez sonhar, durante essas últimas cinco décadas, com os fantásticos gênios e suas descobertas maravilhosas.

Na verdade, esses livros escondiam uma ideologia de guerra-fria, que surgiu logo depois da Segunda Guerra Mundial, que opunha frente a frente super-potências militares e agora, em plena era da globalização, continuam escondendo dos estudantes das áreas científicas o humanismo necessário para a construção de uma sociedade mais justa e menos tecnocrática. O objetivo é mostrar, assim, a ciência como algo neutro, prático, linear, objetivo, desprovido de historicidade. Não é prioritário saber como nascem e evoluem as ideias científicas, mas sim, como aplicá-las de sorte a produzirem efeitos práticos e imediatos. A corrida tecnológica e as frias leis de mercado nutrem, a qualquer preço, esta ideologia até os presentes dias. Portanto, não nos é revelado como é penoso, lento, sinuoso e, por vezes, violento, o processo de evolução das ideias científicas.

As leis de Newton são geniais exatamente porque sintetizam, em poucas linhas, milênios de saber acumulado por diversas civilizações, no entanto, passa-se nas salas de aula uma errônea idéia de sua simplicidade. Estudantes e até mesmo professores podem, equivocadamente, pensar que os conceitos de massa, inércia e de força são simples, naturais e intuitivos, quando isso não é verdadeiro, sendo, pelo contrário, extremamente complexos e objeto de discussões até os presentes dias. Até o século XVII não se fazia uma clara distinção entre a inércia e a força (vis inaertiae e vis viva), e vários aspectos desses conceitos só começaram a ser compreendidos em sua plenitude depois do advento da Teoria da Relatividade. Por sinal, as idéias newtonianas são extremamente difíceis de compreender, em toda a sua extensão, sendo a visão de mundo aristotélica bem mais intuitiva.

Einstein ficou impressionado com a quantidade de conceitos newtonianos que, só neste século, foram devidamente aprofundados. A própria relação F=ma, que se ensina nos colégios e universidades com tanta naturalidade, está, na verdade, envolta por ambigüidades. Será de fato uma equação interligando membros bem definidos a priori? Ou será uma definição de massa inercial? Ou de força? Ou de ambas? Ou ainda uma definição de referenciais privilegiados, ditos inerciais? Na verdade, esta equação esconde dentro de si, na sua forma diferencial, F=dp/dt, toda doutrina determinista que dominará a ciência até o começo do século XX. E a primeira lei, chamada de lei da inércia, será apenas um caso particular de F=ma quando a=0? Teria Newton mantido no seu grandioso Principia uma lei que, na verdade, não é lei, mas um mero corolário? (...)"[1]

Esse texto, escrito pelo físico Roberto Leon Ponczek, traz alguns apontamentos sobre a importância da história das ciências. Esse autor defende que o ensino de ciências de uma forma descontextualizada, a-histórica, promove uma visão fictícia de como os conhecimentos científicos são desenvolvidos. A falta de compreensão sobre esse processo "penoso, lento, sinuoso e, por vezes, violento" leva a uma visão mágica sobre como se processa o conhecimento científico. Ainda que trazer o contexto histórico do desenvolvimento científico não seja suficiente para gerar uma criticidade, falar de ciências sem falar do seu contexto de desenvolvimento é negar que as ciências, como toda produção humana, são contextuais, influenciam e são influenciadas pela sociedade, política, economia e até religião, costumes, cultura. Um físico brasileiro, João Zanetic, defende em sua tese[2], de 1989, que física é cultura. Não só a física, mas as demais ciências também são cultura. Cultura porque são produções humanas, permeadas por disputas que vão além das ciências em si.

Outro físico, nascido na Itália, mas naturalizado brasileiro em 1983, Ennio Candotti, afirma enfaticamente que física é política![3] Por que afinal temos dificuldade de reconhecer a presença da política nas ciências? A presença das ciências na política é talvez mais evidente, afinal para termos políticas públicas sobre o uso de alimentos transgênicos, por exemplo, nada mais natural do que buscar as pesquisas sobre transgênicos e pautarmos nossas decisões a partir delas. Mas as políticas públicas não afetam as ciências, por outro lado? A ciência no Brasil é largamente feita em instituições de ciências e tecnologia, como universidades. Para que as pesquisas sejam desenvolvidas, é necessário o financiamento por órgãos como o CNPq, que vem sofrendo cortes exorbitantes no governo de Michel Temer. O pró-reitor de Pesquisa, Inovação e Criação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Olival Freire Jr. afirma que "É mais fácil ganhar na loteria, do que conseguir uma bolsa no CNPq para pesquisa atualmente". Isso é a política influenciando direta e negativamente na produção científica.

Na sociedade imersa em ciência e tecnologia na qual vivemos hoje, não ser um crítico da ciência (conhecer, se informar, criticar as pesquisas e notícias) é estar à mercê de que outros se posicionem por nós. É ainda cair em um "dogmatismo científico", onde tudo é verdade desde que seja precedido de "pesquisas afirmam que...". Pesquisas são sim importantes para que tenhamos posições políticas pautadas em evidências, mas se não soubermos ler essas pesquisas, como podemos confiar no que nos dizem sobre elas? E se não reconhecermos o caráter essencialmente histórico das ciências, como podemos ser críticos?

Nesse ano de 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) completa 70 anos, e ainda assim seu presidente, Ildeu de Castro Moreira, precisou afirmar, em uma audiência realizada no Senado Federal, em 26 de março, o quão desastrosa é a Emenda Constitucional 95, que congela os gastos na área de ciência e tecnologia por 20 anos! Afinal, quanto conseguimos avancar nesses 70 anos de existência dessa sociedade? Quanto conseguimos trazer a população para a luta pela ciência e tecnologia, que deveria ser uma luta de todos e todas? Não temos a resposta para essas perguntas, nem temos uma fórmula mágica sobre como contornar esse problema de afastamento entre os produtores e produtoras de ciência e tecnologia e os consumidores e consumidoras, que são todas as pessoas dessa sociedade. Mas, mesmo sem respostas prontas, fazemos o que podemos: debater ciências, tecnologia, filosofia, sociedade a partir de uma visão libertária é fundamental. É importante não negar as ciências, mas também é importante saber criticá-la. Não descartar, porém tampouco mistificar. Não aceitar "discursos de autoridade" no sentido de assumir como verdade qualquer informação que tiver o carimbo positivo da ciência, que aprova e classifica, como diria Raul Seixas, mas compreender como uma pesquisa é feita, quais os fatores sociais, políticos, econômicos que estão inseridos naquela descoberta, e se os dados apresentados representam alguma evidência, e que evidência seria essa. Um bom caminho para chegarmos a esse lugar de criticidade é entendermos que a ciência é uma construção humana e, como tal, recebe influências diversas, pode estar errada em alguns momentos, pode repensar suas descobertas, hipóteses, teorias, e inclusive mudá-las.

Não é à toa que iniciamos esse portal no dia 1º de maio de 2018. Foi em primeiro de maio de 1886 que se iniciaram uma série de protestos em Chicago, onde trabalhadores reivindicavam a jornada de trabalho de 8h — que hoje está em risco com a reforma trabalhista — e que culminou na condenação a morte de 5 anarquistas (4 deles foram executados e um se suicidou antes), os chamados mártires de Chicago. É em maio de 2018 também que a greve geral em Paris, conhecida como maio de 1968 completa 50 anos. Abrirmos o Portal Autônomo de Ciências nessa data é extremamente significativo para nós que, além de buscarmos debates sobre ciência e tecnologia, somos seres políticos e reconhecemos a importância da luta dessas pessoas na conquista dos direitos que nós, trabalhadores de C&T ou não, temos hoje. Afirmamos claramente de onde falamos: falamos sobre as relações entre filosofia, ciências, tecnologias e sociedade a partir de um viés libertário e autônomo, anticapitalista e anti-autoritário. Reivindicamos uma ciência socialista[4], por todos e todas e para todos e todas.

[1] PONCZEK, R. I. L. Da Bíblia a Newton: uma visão humanística da Mecânica. In: ROCHA, J. F. (Org.). Origens e Evolução das Idéias da Física. Salvador: EDUFBA, 2002. p. 21-23.
[2] ZANETIC, J. Física também é cultura. 1989. Tese (Doutorado em Educação) — Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.
[3] CANDOTTI, E. Prefácio. In: MARTINS, A. F. P. Física ainda É Cultura? São Paulo: Livraria da Física, 2009. p. 13–18.
[4] Diversos anarquistas falaram sobre a importância da socialização da ciência para a plenitude da atividade humana e para a extinção da sociedade de classes. Enquanto o conhecimento científico se mantiver restrito a poucos e poucas, e enquanto as tecnologias desenvolvidas a partir desse conhecimento forem em detrimento dos donos e donas do capital, não há democracia ou liberdade possíveis. Em O socialismo libertário (editora Global, página 37), de 1979, Bakunin fala: "Na organização atual da sociedade, os progressos da ciência foram a causa da ignorância relativa do proletariado, assim como os progressos na indústria e no comércio foram a causa da sua miséria relativa. Tanto os progressos intelectuais como materiais contribuíram, pois, para aumentar a sua escravidão. O que é que daqui resulta? Que devemos rejeitar e combater esta ciência burguesa, do mesmo modo que devemos rejeitar e combater a riqueza da burguesia. Combatê-las e rejeitá-las no sentido de, ao destruir a ordem social que delas faz patrimônio de uma ou de várias classes, as reivindicar como bem comum de todo o mundo". É uma fala em defesa de uma ciência socializada, mas não só divulgada para a população, como também produzida por todos e todas. Outra fala importante é a de Ferrer i Guardia (1912, páginas 20-21, citado em um texto de Silvio Gallo), onde ele diz que "A verdade é de todos e socialmente deve-se a todo mundo. Colocar-lhe um preço, reservá-la como monopólio dos poderosos, deixar os humildes em uma sistemática ignorância e, o que é ainda pior, dar-lhes uma verdade dogmática e oficial [ele se refere à educação fornecida pela Igreja Católica na Espanha dessa época], em contradição com a ciência e para que aceitem sem protestos seu ínfimo e deplorável estado, sob um regime político democrático é uma indignidade intolerável e, de minha parte, julgo que o mais eficaz protesto e a mais positiva ação revolucionária consiste em dar aos oprimidos, aos deserdados e a todos quanto sintam impulsos justiceiros essa verdade [da ciência] que lhes é roubada, determinante das energias suficiente para a grande obra de regeneração da sociedade". Ainda que carregado de um discurso positivista, muito em voga naquela época (e ainda forte na nossa), se trata de uma fala também em defesa da socialização do conhecimento científico.

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