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A Divergência Prática e a Ação Direta

A Divergência Prática e a Ação Direta

Junho 01, 2019 - 19:19
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Mas também sabemos que em política não há possibilidade de prática honesta e útil sem uma teoria e sem um objetivo claramente determinados. Dito de outra maneira, inspirados como somos pelos sentimentos mais amplos e mais liberais, poderíamos desembocar numa realidade diametralmente oposta a estes sentimentos: poderíamos começar com convicções republicanas, democráticas, socialistas, acabar como bismarckianos ou como bonapartistas.”

- Bakunin (Federalismo, Socialismo e Antiteologismo)

Primeiro é preciso esclarecer o que se entende por alguns princípios que serão explorados aqui. Divergência prática quanto a quem? O que se entende por ação direta? Responderei essas perguntas para que o texto seja de fácil assimilação entre os militantes e simpatizantes que venham a lê-lo.

 

A PRÁTICA INSTITUCIONAL

Para entender as divergências práticas e teóricas que existe entre os militantes anarquistas, autonomistas e libertários no geral com os militantes partidários, é preciso ter em mente quais são as práticas dos grupos chamados “pelegos” neste meio. Pelegos são aqueles que prezam pela institucionalidade acima da luta pela base. Os que prezam pelas eleições acima da organização do povo. Os que prezam pela política formal acima do poder popular. Os que defendem o pacifismo e criminalizam a revolta da população quando esta sai de seu controle. É desses que estou falando. Os que conduzem os carros de som e abafam, com seus comícios partidários, a voz da população que protesta.

Todavia, a prática política destes militantes vai além do boicote à radicalizações e do autoritarismo em processos de condução da luta. Seus coletivos atuam no sentido da disputa política interna aos movimentos sociais e sindicatos. É a luta pela direção da luta. A luta com um fim eleitoreiro. A luta pelo poder e para o poder. Para isso, usam-se diversas práticas de exclusão e sectarismo em relação a outros setores, entre eles o setor denominado como “independente”, composto majoritariamente por libertários, entre anarquistas, comunistas e autonomistas, e demais pessoas que não compactuam com a prática citada.

Além do sectarismo com outros campos, isso gera um distanciamento da base. Seja no movimento estudantil, com a massa de estudantes, seja no sindicato, com os trabalhadores, a ideologização partidária dos movimentos sociais e sindicatos afasta a base da luta política. Isso gera um enfraquecimento da luta e o afastamento de militantes comprometidos, impedindo a radicalização da luta quando esta é necessária.

Experimentamos recentemente, diante de uma crescente fascista, a falta de organização entre os movimentos para a resistência prática aos ataques. Isso é resultado de um longo processo orquestrado pelo Partido dos Trabalhadores e pelo Partido Comunista do Brasil de aparelhamento e institucionalização das organizações de base e dos movimentos sociais, assim perdendo o diálogo com as massas e garantindo o avanço da direita entre as classes populares.

É esta práticaa prática institucional e a busca pelo poder acima da luta popularque nós criticamos. É esta prática que, historicamente, garantiu o fracasso de levantes populares. A prática autoritária e a tentativa de conduzir o processo de luta de cima para baixo a qualquer custo, mesmo que esse custo seja a própria luta.

 

A PRÁTICA LIBERTÁRIA

Dadas as críticas às práticas políticas de grupos partidários e eleitoreiros, devemos ter em mente qual seria o nosso projeto de luta política. O que nós defendemos em detrimento do que foi apresentado acima? Qual a nossa diferença em relação aos “pelegos”? É apenas a postura combativa? Então qual seria a nossa diferença com grupos combativos mas que reproduzem internamente o autoritarismo e a verticalidade dos partidos políticos? Devemos refletir quanto a isso pois, muitas vezes, grupos e militantes libertários acabam reproduzindo estas mesmas práticas, mesmo que inconscientemente, por não refletirem o quão acabam repetindo aquilo que lutam contra. Devemos parar o mais rápido possível com isso.

Para além da postura em manifestações de rua, precisamos refletir sobre nossas práticas no processo de condução da luta. A construção de atos, o trabalho de base, a estratégia, a tática… A luta não começa em um protesto e certamente não se encerra no ônibus em chamas. Há muito mais coisa envolvida no processo militante e manifestações são apenas a ponta do iceberg da luta pela transformação social libertária.

Qual a diferença entre um anarquista convocar uma manifestação de rua sem a construção coletiva pela base e uma entidade estudantil subordinada a um partido político convocar uma manifestação da mesma maneira? Se criticamos estas entidades pelas suas formas autoritárias de condução da luta, devemos apresentar uma alternativa na prática. Convocar assembleias para construção de atividades e manifestações, convidar organizações sociais de base para estas construções, pensar ações coletivas que sejam executadas seguindo a lógica contrária à das práticas que criticamos, ou seja, sempre prezando pela construção de baixo para cima, pela base.

Infelizmente, há quem não pense desta forma, mas convocar uma manifestação de rua é muito mais do que criar um evento e chamadas nas redes sociais. Convocar uma manifestação é um processo de construção conjunta e articulação com movimentos e organizações de base. É uma etapa da produção de articulações entre os grupos populares que devem protagonizar a criação do poder popular. Portanto, mais que criar um evento no Facebook, deve-se procurar os movimentos e organizações sociais, os coletivos inseridos na luta comunitária, os grupos de trabalhadores organizados e aí sim, coletivamente, construir e convocar a manifestação de rua.

Se construímos um ato pela base, ele por si só será mais radicalizado que uma manifestação convocada pelas entidades políticas partidárias, e, com certeza, mais potente e com consequências mais duradouras que um protesto puxado por militantes independentes porém sem construção coletiva. É importante colocar a crítica à esquerda eleitoreira, e também é importante fazer a autocrítica em nosso campo político.

A falta desse trabalho de base pré e pós protesto reflete na própria conduta dos militantes independentes na manifestação. Teríamos muito mais capacidade prática para ações, e é preciso entender que ao falar sobre ação direta não me refiro exclusivamente a ações violentas, e resistência, no caso da repressão policial, se fossemos mais organizados e maiores, e é preciso entender onde estamos errando para que possamos começar a acertar.

Inserir-se em movimentos sociais que lutem por pautas de seu interesse, como o movimento estudantil, ou os movimentos comunitários, sindicatos e movimentos por moradia ajudando a construir, dentro destes espaços, a autogestão, a democracia direta, a descentralização e demais princípios libertários, além de se opor a discursos e práticas reformistas e que tendam ao liberalismo ou à defesa da democracia burguesa deve ser uma prática fundamental e prioritária dos militantes libertários, e não pode, em qualquer hipótese, ser deixada de lado em prol de atuações imediatistas. São os movimentos populares que construirão o poder popular, e não uma pequena vanguarda militante, por isso é necessária esta inserção nesses espaços para construir coletiva e horizontalmente a transformação social a longo prazo.

 

A AÇÃO DIRETA

A coisa mais absurda e totalmente irrelevante que alguém pode dizer ou fazer quando se aproxima na intenção de apoiar ou ajudar um grevista que está lidando com uma situação imediata, é propor «nas eleições a gente dá o troco!» quando a próxima eleição está a uma distância de seis meses, um ano, ou dois anos.”

Voltairine de Cleyre (Ação Direta)

É necessário também ter em mente o conceito de ação direta e relacioná-lo diretamente com o conceito de estratégia. Há quem acredite que jogar pedras em um ponto de ônibus, por si só, é uma ação direta. Neste caso, o ponto de ônibus possui uma representatividade política? Há simbolismo em tal ação que possa ajudar a luta? A luta é contra a forma como são colocados os pontos de ônibus na cidade? Essa ação foi pensada coletivamente? Se alguma dessas respostas for sim, então foi feita uma ação direta política. Se a resposta de todas for não, então esta ação não ajudará, pensando estrategicamente, no objetivo da luta.

A ação direta é toda aquela ação política que não é indireta. Parece redundante, mas é a maneira mais simples de entender o conceito. Por ações indiretas entende-se ações que apelam para que outros, sejam políticos, entidades representativas, partidos, resolvam determinado problema ou conquistem determinada pauta. Seria, por exemplo, votar. Esperar soluções práticas vindo do voto e de parlamentares. Quando se vota em um político esperando que ele atenda suas demandas em vez de se organizar e exigir estas demandas pelo processo de luta, então se faz uma ação indireta.

Toda ação política, realizada coletivamente, independente do Estado, de instâncias representativas e de qualquer outro órgão para o qual poderia ser terceirizada a função, é uma ação direta. Ação direta pode ser tanto violenta quanto não violenta, e é neste momento que é necessário pensar estrategicamente. Pensar coletivamente que tipo de ação seria mais eficaz para a luta que está sendo feita. Uma ação direta violenta? Uma ação direta não violenta? Organizar uma greve? Organizar um trancaço? Organizar uma ocupação? Todas são ações diretas e nem todas são violentas, mas todas, dependendo do contexto, poderiam ser muito mais úteis do que quebrar um ponto de ônibus. A não ser, é claro, que a luta seja contra os pontos de ônibus.

É preciso ainda ter em mente uma cadeia de importância da prática militante. O objetivo estratégico está sempre acima da tática. Sendo assim, a ação direta deve ser pensada em função da estratégia. Existe uma diferença entre o confronto com forças repressivas do Estado com a construção de uma autodefesa e resistência e uma ação direta. O confronto decorre diretamente da repressão policial, enquanto que a ação decorre do planejamento e da construção coletiva pensando sempre a melhor maneira para alcançar os objetivos da luta.

Portanto, é preciso que a ação direta seja executada com fins estratégicos, e que esteja subordinada aos objetivos futuros daqueles que a fazem. Para isso, devemos ter em mente estes objetivos.

 

A TÁTICA E A ESTRATÉGIA

Mas o que é tática e estratégia? Qual a diferença entre os dois conceitos? Por que são tão importantes?

Para que possamos chegar ao último tópico deste artigo, é de suma importância que haja compreensão mínima acerca dos conceitos de tática e estratégia. De uma maneira simplista, poderíamos colocar a tática como as práticas que se desenvolvem com fins estratégicos. Dando um exemplo geral: suponhamos que um time de futebol esteja jogando um campeonato no qual, para ser campeão, ele precisa de três vitórias, sendo que jogarão quatro partidas, duas em seu estádio e duas em estádios adversários. Para atingir seu objetivo, que seria o título do campeonato, um treinador monta a estratégia de ganhar as duas partidas em casa e ao menos uma fora. Para isso, em cada jogo, ele desenvolve uma tática que garanta que esta estratégia tenha sucesso e o time ganhe o campeonato. Toda a luta tem um objetivo e, para se chegar a ele, devemos planejar qual será a estratégia para esse fim. Dentro da estratégia, devemos escolher as melhores táticas e os melhores momentos para utilizá-las. A estratégia é o plano que traçamos para chegar ao objetivo e as táticas são as ferramentas que utilizaremos nesse plano. O objetivo deve guiar a estratégia e uma tática só deve ser usada dentro da estratégia.

Podemos dizer então que a estratégia orienta a tática, e o objetivo motiva a estratégia. Portanto, a tática está submetida à estratégia. Os fins são garantidos pelos meios.

Diversas organizações possuem diversas estratégias, e uma espécie de objetivo comum entre os militantes libertários seria a transformação social. Então cada organização usa uma estratégia para atingir este objetivo, e desenvolvem táticas com base nesta estratégia. Quando pensamos a tática separada da estratégia, podemos ter erros práticos grotescos que podem nos afastar cada vez mais de nossos objetivos.

Pode-se também pensar em uma questão de curto, médio e longo prazo. Enquanto a estratégia está mais relacionada com a prática militante de médio e longo prazo, as táticas seriam formas pontuais de luta.

 

O BLACK BLOC

Agora que temos um entendimento mínimo do que seriam as noções de tática e estratégia, podemos analisar o Black Bloc.

Após os protestos de 2013, ações de violência contra símbolos do capitalismo começaram a ganhar destaque na cobertura midiática. Pessoas usando máscaras enfrentavam a repressão policial e depredavam prédios públicos, bancos, grandes lojas e geravam opiniões contrárias entre a população. Um exemplo claro de como tais práticas dividiam ideias foi em uma enquete no programa do apresentador sensacionalista Datena, na qual ele pediu a opinião de seu público sobre o que chamou de “protestos com baderna.” Enquanto incentivava seus telespectadores a votarem contra, Datena viu que a opção favorável às ações violentas ganhou muito mais votos. É possível dizer que, naquele momento, o Black Bloc tinha apoio de grande parte da população.

Mas o que é o Black Bloc?

Black Bloc é uma tática. Não é um movimento, não é um grupo, não é uma organização terrorista, mas apenas uma tática. É chamado de “Black Bloc”, que seria bloco negro em português, pois seus adeptos, ao colocá-la em prática, se vestem de preto e usam blusas pretas no rosto para dificultar a identificação pelos agentes da repressão, além de evitar algum tipo de “heroísmo.” A função desta tática é de autodefesa de manifestações de rua. Quando a polícia ataca o protesto, o Black Bloc age como um escudo da passeata que protege as pessoas e impede que o protesto termine antes da hora. Neste processo, é comum atacar-se símbolos do sistema, como bancos e prédios governamentais.

A tática Black Bloc é muito utilizada por anarquistas e libertários no geral, mas não é exclusiva destas pessoas. Por ser apenas uma tática, qualquer pessoa ou organização que veja a necessidade de utilizá-la para seus fins estratégicos pode utilizar.

O principal problema dessa prática no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, é que algumas pessoas veem o Black Bloc como um grupo, uma espécie de movimento social ou algo do tipo, e não apenas como uma tática. Em vez de se organizarem em grupos de afinidade prática ou ideológica, alguns ativistas tendem a manter sua prática apenas em torno da tática Black Bloc, fazendo com que em todas as manifestações haja a tática, mesmo que não seja necessária ou até mesmo seja estrategicamente problemática no contexto.

Isso facilita a criminalização, pois a polícia começa a perceber quem são os indivíduos que usam a tática, e faz com que alguns objetivos estratégicos sejam secundarizados. O Black Bloc é uma tática importante e deve sim ser utilizada quando necessário, mas ela não pode ser encarada como um grupo ou uma organização, tanto pela mídia e pela sociedade no geral quanto pelos militantes anarquistas.

Além disso, o Black Bloc é uma tática de autodefesa e resistência, portanto, sua função é de proteção da manifestação. É diferente praticar uma ação direta de usar a tática Black Bloc. O confronto decorrente da repressão policial é resistência, reação. A ação direta, como o próprio nome diz, é uma ação. Podem haver ações diretas durante um confronto, mas para que sejam politicamente eficazes, elas devem ser construídas coletivamente, como já dito no tópico.

Portanto, este artigo é um convite a todos e todas as militantes anarquistas ou libertárias no geral a construir uma prática militante mais eficaz. É uma crítica aos partidários, uma análise de nossas práticas enquanto anarquistas e ao mesmo tempo uma autocrítica de nosso campo político. Precisamos vencer as barreiras que o sistema nos impõe, e mesmo que no discurso já saibamos o que deve ser feito, precisamos aplicar nossas teorias na prática e construir uma alternativa concreta para os anseios populares pela luta por fora da institucionalidade. Precisamos, acima de tudo, dar um passo além no processo organizativo e de articulação, fortalecendo os laços de solidariedade com todos e todas que possuem ideias compatíveis acerca da liberdade e da solidariedade popular, para agir coletivamente e de forma concreta, partilhando estratégias e táticas.

 

Escrito por Ale

 

 

 

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