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A Ger'Ação Direta no DF: Reflexões sobre as lutas sociais em Brasília na primeira década século XXI

Artigo de Paíque Duques Lima escrito em 2013, publicado no livro  "Universidade e Movimentos Sociais" . 1ed.Belo Horizonte: Fino Traço Editora LTDA., 2015, v. , p. 1-284. Organizado por Erlando da Silva Reses.

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Paíque Duques Lima1

 

Resumo

O presente artigo tem como eixo condutor a relação entre a atual geração do movimento estudantil na UNB e o processo contemporâneo de movimentos sociais no Distrito Federal. Trabalharemos a hipótese de que a Ação Direta é a principal característica deste período. Sua análise terá como parâmetro cinco eventos nos quais a participação de estudantes secundaristas e/ ou universitários/as foi determinante: a Greve Nacional das Universidades Federais de 2001; a Luta pelo Passe Livre Estudantil e Contra o Aumento de Passagens de ônibus de 2004-2006; a Ocupação da Reitoria da UNB e a Luta pela Paridade de 2008; o Movimento Fora Arruda e Toda Máfia de 2009-2010; a Luta em Defesa do Santuário dos Pajés e contra o Setor Noroeste de 2011-2012. A análise será feita desde as recentes produções acadêmicas de ativistas sobre o movimento que apresentam diferentes características desta luta. Faremos, por fim, um balanço geral das principais contradições, limites e possibilidades desta luta, finalizando com uma breve comparação desta geração com outra, de 1968, também marcada por sua radicalidade.

 

Apresentação

Um trabalho acadêmico dificilmente consegue apreender em sua essência um fenômeno político complexo com a devida relevância que este merece. Ainda mais quando realiza-se simultaneamente a eles, pois perde sua qualidade de análise de longo prazo, interlocução de eventos com estruturas e significados mais gerais das ações em análise. Todavia este artigo – cujo objetivo é contribuir para a reconstrução da memória das lutas sociais no Distrito Federal e sua relação com a Universidade de Brasília (UNB) – busca sistematizar e aprofundar um atual esforço de dissertar sobre algumas experiências contemporâneas de movimentações sociais locais. Procedemos, para tanto, uma análise das produções acadêmicas acerca de recentes lutas políticas de Brasília escritas por ativistas destes movimentos sociais em trabalhos de graduação e pós-graduação da UNB. O sujeito deste estudo refere-se a uma geração - compreendida nos primeiros anos dos anos 2000 - que ficou famosa em lutas empreendidas nos comandos de greve estudantil (1); pelo passe livre e transporte coletivo de qualidade (2); na ocupação da reitoria da UNB e derrubada do reitor Timothy Muhrolland (3); pela queda do ex-governador Arruda (4); na defesa do Santuário dos Pajés contra a especulação imobiliária (5).

Trata-se de um grupo heterogêneo, composto por pessoas de diferentes condições sociais, faixas etárias e orientações políticas que foi reconhecido socialmente como "estudantes da UNB"2. Contudo, partimos da hipótese de que o diferencial desta geração não é a sua faixa etária ou situação escolar; seu diferencial na apreensão da Ação Direta como princípio, metodologia e forma de organização. Faremos uma síntese histórica do movimento com base nos cinco episódios acima citados. Compreendo esta geração como resultado e parte de um constante fluxo de organização coletiva marginal3. Marginal porque a ênfase prioritária do grupo à Ação Direta não pôde desenvolver-se sob qualquer tutela estatal ou como tática legítima pelos aparelhos tradicionais de organização política.

Nomeamos este grupo como 'Ger'Ação Direta'. É necessário esclarecer que este é um nome puramente literário, arbitrário e externo às movimentações, utilizado somente para os fins deste artigo. Não recordamos desta expressão ter sido utilizada em nenhum momento, sendo de nossa inteira responsabilidade a criação e uso do termo. Tratamos o grupo como uma geração porque suas ações são muito distintas e conscientemente opostas às do período anterior – da abertura política pós-ditadura – que baseou-se na ação institucional partidária, na disputa eleitoral do aparelho estatal, nas formas deliberadamente hierarquizadas de organização e na ação política de massas cujo objetivo é o acúmulo de forças para a disputa do estado. Grosso modo, a Ação Direta pode ser definida como um princípio revolucionário - herdeiro principalmente no movimento operário anarquista - que busca acabar com as mediações sociais hierárquicas utilizando métodos mais imediatos de ação; um “conjunto de práticas de luta que são, basicamente, conduzidas apesar do Estado ou contra o Estado, isto é, sem vínculo institucional ou econômico imediato com canais e instâncias estatais” (SOUZA, 2012).

 

  1. Comando de Greve Estudantil na UNB - 2001

A participação da UNB na greve nacional de estudantes, docentes e funcionários/as na em 2001, pela forma como concretizou a reorganização do movimento estudantil, pode ser vista como o marco inicial desta geração. A conjuntura era propícia, apesar do Diretório Central dos Estudantes da UNB (DCE) estar sem diretoria há alguns anos após gestões dirigidas pela União da Juventude Socialista (UJS), o braço jovem do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) - que perpetuava-se na entidade com a herança política de sua participação no "Fora Collor" em 1992. O DCE ficou sem diretoria por decisão do Conselho de Entidades de Base (CEB, com representantes de todos os Centros Acadêmicos Estudantis da Universidade), que opôs-se à política de trampolim político-eleitoral realizado pelos Partidos Políticos além dos sucessivos desvios de lucros com as carteiras estudantis. O CEB constituiu uma comissão responsável pelas tarefas executivas do DCE que seria ativada sempre que as entidades assim quisessem.

A ideia de atacar a burocracia estudantil – identificada com o DCE – e abrir espaço a conselhos de base é entremeada a uma perspectiva política que pouco a pouco desenvolvia-se na época. Baseava-se na influência política formada pelas grandes ações de movimentos nacionais como o MST (as marchas de 1995, 1997 e a marcha dos 100 mil em 1999) e internacionais (o movimento Zapatista mexicano que começa sua ação pública em 1994, o auge do movimento antiglobalização de 1999 até 2003, o panelaço argentino de 2002, a guerra do gás/água boliviana entre 2000 e 2003, o bolivarianismo venezuelano emergido em 2002 com a tentativa de golpe de estado na Venezuela) junto às ações radicalizadas do movimento estudantil Autogestionário e AnarcoPunk nas mobilizações de massa (em especial no ato contra o apagão de 2001 em Brasília); a constituição de experiências autônomas no movimento estudantil; a cena contracultural e underground baseada na filosofia do “faça-você-mesm@” onde realizavam-se shows, compartilhava-se fanzines, reunia-se em grupos de estudo e realizava-se campanhas específicas; a crença cada vez mais generalizada de que as entidades estudantis haviam se engessado dentro de seu próprio aparelho burocrático; a crise da primeira fase do neoliberalismo e os movimentos de Resistência Global (ou Antiglobalização, ver a frente), entre outros fatores. Estas foram referências marcantes para que fosse constituído um comando de greve estudantil durante a greve docente realizada em meados de 2001. Projetava-se que as demandas estudantis tivessem voz ativa naquele movimento em defesa da educação pública.

O comando organizou muitas atividades, além de um acampamento no ICC-Norte (prédio da UNB) que durou mais de um mês. Dentre as principais bandeiras estavam a crítica do modelo educacional privatista desenvolvido pelo então ministro da educação Paulo Renato4 e a pauta da assistência estudantil permanente. Deste processo consolidaram-se na universidade uma série de coletivos atuando em diferentes questões: o coletivo “ExtraMuros”, pautando a política da extensão universitária; o “Estágio Interdisciplinar de Vivência” - que realizava formação de estudantes junto a assentamentos rurais; a Rádio Laboratório de Comunicação Comunitária – RALACOCO. Outros coletivos surgiram nesta época, frutos de outros processos, como o ENEGRESER (de estudantes negros/as), defensor de ações afirmativas, em especial do projeto de cotas raciais no vestibular; grupos feministas e LGBTs, como o Nada Frágil, Filoginia. Ao fim da greve, abriu-se um debate bastante polarizado no CEB em relação à retomada das eleições ao DCE. Por um lado, defendiam a necessidade deste para uma representação política estudantil constante; por outro argumentava-se que o conjunto de coletivos da universidade poderia realizar por si mesmos esta representação. Ao fim, as eleições foram retomadas, porém o DCE não possuia mais os amplos poderes centrais que detinha anteriormente. Em especial porque não era mais responsável pelas lucrativas carteiras estudantis.

Esta divergência revela que a geração não era homogênea em nenhum sentido – as disputas internas sempre foram acirradas – porém constituiu mecanismos de ação coletiva para reivindicar respostas para demandas do cotidiano estudantil. A transversalidade das organizações – ou seja, coletivos orientados a temas específicos e não a um ou outro programa político – constituiu a base de princípios e pautas que se desenvolveriam nos momentos seguintes por todo o movimento: autogestão, mídias livres, horizontalidade, pré-figurativismo, reparação, lutas raciais, contra a homofobia, ambientalistas e feministas. Em alguma medida, este grupo extrapolava a universidade e articulava-se no DF sob as mesmas bases.

Neste período, as cotas para negros e negras nos vestibulares são implementadas, o DCE firma-se como entidade sem grandes poderes burocráticos, algumas experiências de rádios livres consolidam-se na cidade, os primeiros estágios de vivência são realizados no DF e a pauta de extensão universitária torna-se consensual.

Durante este processo surgiu no DF um coletivo do Centro de Mídia Independente (CMI, ou Indymedia Center) – uma Rede Global de Ativistas que utilizam a mídia como meio de manifestação, comunicação e organização. Fundado em 1999 durante os protestos massivos em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio, o CMI organiza-se no Brasil ao fim do ano 2000. Em Brasília houve diferentes iniciativas por um coletivo local entre 2001 e 2003, quando finalmente o coletivo local se organiza. O CMI tinha como foco os movimentos sociais, principalmente aqueles de ação direta.

Danilo Farias (2005) apresenta uma análise da constituição do CMI-Brasília argumentando sobre como um coletivo local pode difundir e/ou ser interlocutor da cultura política radical numa região. O estudo debruça-se sobre esta organização por julgar que ela concentra ao mesmo tempo práticas organizativas, midiáticas e ideológicas que refletem um tipo de atuação da qual a juventude é o seu maior protagonista.

Formado por uma convergência de ativistas recém-ingressados/as em diferentes militâncias - feminista, ecológica, lgbtt, negra, sindical, de mídia alternativa, educação popular, estudantil e contracultural – o CMI-Brasília buscou irradiar o tipo de movimento social que a mídia independente buscava cobrir. Era um grupo de pessoas que havia tido relação direta ou indireta com a greve estudantil da UNB, a campanha pelas Cotas Raciais, o movimento contracultural ou com os atos que daquele período. Pelo seu caráter em rede, o coletivo articulou-se com diferentes outras pequenas iniciativas locais/globais, desenvolvendo localmente a referência de uma perspectiva autogestionária contrária ao que se impunha sobre a cidade. Era, em alguma medida, uma reedição das táticas empregadas globalmente na constituição do movimento antiglobalização5, sem todavia deixar de retirar dele seus ensinamentos6.

Esta articulação organizou em setembro de 2004 um encontro voltado à difusão destes valores em toda esquerda: o primeiro Encontro de Grupos Autônomos (EGA)7, onde nasceu a Convergência de Grupos Autônomos (CGA), uma articulação destes coletivos com intenção de desenvolver práticas autogestionárias, radicais e anticapitalistas no DF com uma perspectiva autonomista ainda em gestação. O foco de atuação que mais se desenvolveu após o encontro foi a luta pelo passe livre estudantil8.

 

  1. O Movimento Passe Livre - MPL

Para tratar do Movimento Passe Livre é necessário analisar à Mobilidade Urbana e o Transporte Coletivo no DF. Brasília é uma cidade marcada pela segregação entre seu Centro (Plano Piloto, parte planejada e tombada como patrimônio, ocupada majoritariamente pela elite local) e as Cidades Satélites (regiões administrativas periféricas ocupadas por migrantes de baixa renda e originadas, sobretudo, das ocupações irregulares de trabalhadores/as que construíram a capital). Trata-se de um núcleo urbano polinucleado, ou seja, onde os bairros estão distantes entre si e conectam-se por meio de rodovias. A renda e emprego concentram-se na área tombada e a maioria dos trabalhadores/as vivem nas cidades satélites.9

Numa situação deste tipo, o transporte coletivo tem papel vital: seja para o deslocamento da força de trabalho, controle da circulação da população, como influência política e fonte de lucro inesgotável de alguns empresários sobre a cidade. Este cenário configurou a mobilidade do DF, pois desde o acordo entre algumas oligarquias regionais e o Estado10, todo o transporte local passou a ser realizado por empresas com serviço de rebaixada qualidade, horário reduzido, com poucos veículos e passagem cada vez mais cara. O senso comum era de que o transporte coletivo era muito ruim e caro, apesar de extremamente necessário. Tais condições constituíram a base necessária para que a demanda reprimida por transporte público se materializasse em pauta reivindicativa de inevitável prioridade: ao fim do ano de 2004 surge o Movimento Passe Livre, impulsionado pelo Encontro de Grupos Autônomos do DF11.

O objetivo do encontro era mapear a política independente do DF – não partidária e não relacionada a ONGs – e também unir pessoas que, apesar de interessadas em um tipo de política diferente, ainda não sabiam como se organizar. No encontro, se discutiram alguns pontos de atuação no DF. Foram formuladas quatro ideias: o jornal Autonomia DF; lutar contra a violência policial; contra a ALCA (Tratado de Livre Comércio entre as Américas); e pelo transporte público. Havia uma conjuntura favorável para a criação de um grupo que pensasse esse assunto já que o transporte da cidade necessitava uma reforma urgente e emergencial (MENDES, 2007, p. 21).

 

As jornadas de lutas que o movimento realizou em seu primeiro ciclo de atuações (de quando o MPL foi fundado em outubro de 2004 até o fim da jornada de lutas contra o aumento das passagens em maio de 2006) envolveram um conjunto expressivo de pessoas tanto em suas reuniões (com cerca de 60 participantes ativos/as), em suas listas de e-mails - com de centenas de estudantes - como em suas manifestações onde milhares de pessoas participaram fechando ruas, ocupando prédios públicos, pulando catracas e manifestando-se em diversas cidades do DF. Além daqueles/as diretamente vinculados/as ao movimento e as instituições com as quais se relacionaram – a mídia local, polícia militar, órgãos públicos – muitas pessoas presenciaram as manifestações, conheceram o movimento e foram influenciadas e identificaram-se com este processo. Daí pode-se entender quando Mendes diz (2007, p.10) que a formação do MPL forjou uma cultura de ação política que se desenvolveu para além da sua própria luta. Em outras palavras, a experiência organizativa do MPL despertou militantes a outros tipos de ações não vinculadas ao transporte público. Segundo a autora (Idem, Ibidem), o movimento empreendeu seu impacto principalmente sobre dois eixos: o primeiro, imediato, por uma mobilidade urbana com um transporte coletivo público, gratuito e de qualidade; o segundo tratou do direito à cidade, ou seja, da gestão direta na política urbana, do direito não só de acessar a cidade, mas também decidir sobre ela.

Trata-se, assim, de um movimento que surge de uma questão específica - a precariedade do transporte coletivo - e que a partir deste item se politiza e envolve-se com diferentes outras reivindicações chegando a uma crítica geral da sociedade capitalista,12 identificada na assunção da bandeira do Direito à Cidade.

Mendes (2007) observa o constante crescimento das bandeiras do movimento, não mais restritas ao transporte. Este conjunto de bandeiras é denominado “Identidade Libertária”, a convivência de diversas lutas contrárias às opressões (racial, de gênero, de orientação sexual, de libertação animal, contracultural, pela mídia independente, de software livre, contraria à propriedade privada) articuladas entre si. A universalização deste processo de consciência rumo a uma crítica sistêmica da sociedade capitalista é denominado pela autora como “Constelação”, ou seja, a forma como este grupo partiu do diálogo entre as bandeiras específicas a um entendimento Anticapitalista de sua luta. Este é o salto do movimento.

O Movimento Passe Livre interferiu objetivamente no seu campo específico - ainda que não da forma como previra. Para atestar esta afirmação basta observar a relevância pública que o tema dos transportes ganhou após as grandes ações de 2004 a 2006, a estabilidade no preço das tarifas e o número de programas implementados ou sugeridos pelos sucessivos governos a fim de equacionar a mobilidade urbana13. Em especial destacamos a implementação do Passe Livre Estudantil no DF – principal bandeira do MPL – em 2009 pelo então governo de José Roberto Arruda, que pouco tempo antes se pronunciou publicamente contra a proposta.

Após as grandes manifestações contra o aumento das passagens em 2006, a sensação generalizada era de que esta luta havia sido plenamente derrotada. A passagem não havia baixado e ninguém imaginava ainda que ela passaria os próximos sete anos sem sequer previsão de aumento. O MPL-DF manteve sua organização ativa após esta derrota desde aquela época até os dias atuais passando por diferentes momentos de sua luta. Porém este duro episódio teve como consequências algumas rupturas. A autocrítica foi severa, e muitos/as militantes do movimento buscaram novos espaços de atuação: seja construindo novos coletivos e frentes de atuação autonomistas; rompendo com a autonomia rumo a formas anarquistas mais programáticas ou passando a militar em Partidos Políticos. Este grupo se conhecia e, apesar das divergências, havia se formado em uma luta comum baseada nos mesmos referenciais. Não foi de se espantar que esta cultura tenha contaminado suas novas organizações.

 

  1. O Movimento “Fora Timothy” e a ocupação da reitoria da UNB

Voltemo-nos à Universidade de Brasília. Desde a reativação do Diretório Central de Estudantes em 2004, este havia sido ocupado por diferentes grupos políticos que não se perpetuaram no cargo. Fossem gestões ligadas a algumas correntes do Partido dos Trabalhadores (PT), de estudantes independentes, autonomistas, da UJS, do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) com o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento Instinto Coletivo14, este período caracterizou-se por uma diversidade de táticas e pluralidade de coletivos atuando no movimento estudantil. O DCE manteve sua relevância ainda que com limites, dada a forte atuação dos grupos de base. Ativistas do MPL, CMI e outros coletivos com participação de estudantes, não atuavam organizadamente na universidade, ainda que seus militantes estivessem muito presentes nos debates e lutas - nem sempre buscando cargos representativos para além dos centros acadêmicos. É importante frisar que durante o primeiro ciclo de lutas do MPL a maioria esmagadora do movimento era secundarista, sendo que muitos/as tornaram-se universitários/as logo em sequência.

A universidade neste período era atravessada politicamente por grandes debates. No âmbito federal, mantinha-se a resistência estudantil à política de privatização do ensino superior empreendida no governo de FHC/Paulo Renato, que abriu a possibilidade da criação indiscriminada de instituições privadas de ensino superior (IPES), em detrimento da educação pública. Esta crítica desenvolveu-se especialmente nos debates sobre o PROUNI15. Ligada a este tema, debatia-se a concomitante política de Reforma Universitária (REUNI), que previa uma expansão do ensino superior por todo o Brasil com investimentos maciços e profunda reformulação das grades de ensino, pesquisa e extensão. 16

A diferença do impacto deste debate na Universidade de Brasília em relação aos períodos anteriores é que estes dois programas foram propostos pelo recém-empossado governo Lula, do PT e sua coligação - cujas correntes tinham relevante presença no movimento estudantil local e nacional. As posições se polarizaram: de um lado, os setores vinculados institucionalmente aos grupos políticos do governo defendendo que o REUNI e o PROUNI não eram totalmente bons, mas poderiam ter seu conteúdo alterado pelo movimento estudantil se este os disputasse politicamente; de outro, partidos radicais da esquerda e outros setores independentes do governo realizando uma crítica estrutural a estes projetos sob o argumento de que eles aprofundavam igualmente a precarização do ensino público e a privatização do ensino superior e que, por isso, deveriam ser combatidos. Da mesma forma, os debates internos da UNB davam-se em parte vinculados aos projetos federais: discutia-se a possibilidade da criação de novos campi fora do Plano Piloto em locais já previstos anteriormente – Planaltina, Ceilândia e Gama – com as verbas do REUNI, onde as posições acima se repetiam na disputa e resistência ao projeto de novas instalações.

Outro tema relevante eram os acordos das Universidades Federais com as Fundações Privadas de Apoio à Pesquisa. Neste ponto, mesmo com nuances, havia maior consenso entre os grupos do potencial danoso que as fundações privadas exerciam na universidade ao passarem a ser financiadoras-gestoras de grupos de interesse privado no ensino superior, retirando sua autonomia. Inalienável a este debate era a questão da democracia universitária em seus diversos planos: desde a burocracia nos conselhos de Institutos e Departamentos setoriais, passando pelas abusivas taxas de formatura, matrícula entre outras, indo fundo à crítica da composição dos Conselhos de Decisão - Conselho Administrativo (CAD), Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (CEPE) e Conselho Universitário (CONSUNI), cujas vagas são distribuídas em 70% para docentes, 15% para estudantes e 15% para funcionários/as. A crítica acentuou-se, pois, após algumas eleições paritárias para reitor – ou seja, cada segmento com peso de um terço dos votos –, foram realizadas três eleições repetindo a fórmula percentual dos conselhos – o “setenta-quinze-quinze”, como nomeado à época. A insatisfação discente materializou-se em Campanha pela Paridade.

Em 2005, durante a eleição para a reitoria, a Gestão do DCE “Autonomia no Movimento d@s Estudantes” (AME) chamou, após derrotada a campanha pela paridade, a campanha “Boi-Cotar”, que incentivou o voto nulo estudantil em defesa da democracia universitária. O movimento chegou inclusive a ocupar a reitoria no dia da posse do então recém-eleito reitor Timothy Mulholland. Esta gestão foi caracterizada por vários reordenamentos institucionais: cresceram os acordos com as Fundações Privadas; os poderes do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília foram ampliados e consequentemente o CAD, CEPE, CONSUNI e reuniões dos colegiados dos Institutos foram esvaziados. Ou seja, a participação política da UNB foi institucionalmente asfixiada.

Não surpreendeu quando, em 2008, surgiram as denúncias do Ministério Público de uma série de desvios de verba por parte desta administração em conjunto com algumas Fundações Privadas.17 Os órgãos docentes foram silenciados por esquemas de cumplicidade. Porém, emergiu o “Fora Timothy”, um amplo movimento de estudantes – cujo DCE estava sob a gestão “Nada Será Como Antes” (2007-2008) - que realizou assembleias, atos e ocupou a reitoria da UNB por 15 dias, tendo como reivindicações: a renúncia do Reitor e seu vice; a realização de um congresso estatuinte paritário; eleições paritárias para reitor, dissolução do conselho diretor da FUP, melhoria nos campus da UNB e Casa dos Estudantes Universitários, abertura das contas de todas as fundações da UNB e melhoria das condições para docentes e técnico-administrativos. O movimento estudantil apenas desocupou a reitoria da UNB após a derrubada do reitor e seu vice, a garantia em CONSUNI da realização de congresso estatuinte paritário e a realização imediata de eleições paritárias para reitor. Todavia, poderíamos dizer que este movimento, fundamentalmente, apontou para o DF e até mesmo para o país a força do Movimento Estudantil, que já havia contagiado tantas outras universidades18.

Segundo Padilha (2008), o movimento estudantil presente na UNB demonstrava características gerais de outros períodos históricos, como pluralidade na origem de classe, militância transitória e ênfase nas lutas conjunturais. Mas cada geração realiza suas lutas sob particularidades históricas e condições sociais determinadas. Apesar da conjuntura desfavorável à sua organização – dada sua crise de representatividade e rejeição à burocratização que então se generalizava no movimento estudantil e em outros aparelhos da classe trabalhadora pós-governo PT – esta geração reencontrou-se em outras referências organizativas. Em muito herdeira de experiências prévias vivenciadas – a greve estudantil de 2001 e a consolidação do MPL – as características de cooperação, horizontalidade, participação coletiva, descentralização, assembleias e transparência nortearam o movimento “Fora Timothy”. Daí concluímos que esta "Cultura Libertária", tal qual nomeia Mendes (2007), tornou-se hegemônica no movimento estudantil universitário, transcendendo o espaço do movimento rumo a outras lutas da sociedade. Para Padilha (2008), a luta desenvolve seu caráter pedagógico porque, a depender de suas características internas mais ou menos participativas, ela formará militantes mais ou menos ativos/as, criativos/as, emancipados/as19.

 

  1. O Movimento “Fora Arruda”

Desde a articulação entre a pedagogia das lutas baseadas na horizontalidade/autonomia e a experiência que a Ação Direta trouxe como renovação tática para a militância desta geração, passaremos a análise das mobilizações que conduziram a derrubada do ex-Governador José Roberto Arruda, na jornada de lutas conhecida como “Movimento Fora Arruda e Toda Máfia” ou somente “Fora Arruda”. Esta luta durou aproximadamente um semestre e teve como episódios centrais a ocupação da Câmara Legislativa do DF, a “Batalha do Buriti” (onde a foto de um cavalo policial pisoteando um manifestante rodou o mundo), o bloco carnavalesco “Fora Arruda” e os escrachos às residências dos envolvidos no esquema de corrupção.

Para compreender o movimento “Fora Arruda” é necessária uma análise sobre como José Roberto Arruda e seu segmento político construíram em Brasília uma determinada forma de governabilidade. Tal projeto, de indiscutível caráter privatista, se fundamentou em uma retórica desenvolvimentista e modernizadora da gestão do setor público-estatal. Sob uma campanha eleitoral cuja maior bandeira propunha um choque de gestão nos serviços e contas públicas, Arruda (DEM) – que ficara famoso no caso de corrupção do painel do Senado – elegeu-se com popularidade baseado no discurso da “legalidade e eficiência”.

A política de choque de gestão executada pelo GDF a partir de 2007 centrou-se em três ações concomitantes, voltadas tanto para os mais pobres e para classe média baixa como para a alta classe média brasiliense. De um lado, o argumento da eficiência administrativa justificou a transferência para a iniciativa privada das políticas e serviços sociais, principalmente os vinculados aos direitos sociais básicos e populares: assistência, saúde, educação, habitação e transporte. De outro, através do projeto de reorganização territorial do Distrito Federal mercantilizou-se o solo urbano, com fomento estatal à especulação imobiliária. Não coincidentemente o vice-governador Paulo Octávio era proprietário de uma das maiores construtoras da capital e, fingindo ser 'despropositadamente', aprovou-se um novo Plano Diretor de Ordenamento de Terras (PDOT), que transformou em área urbana grande parte do território rural do DF, abrindo um novo ciclo econômico de empreendimentos imobiliários na região. Para tornar as duas primeiras ações administrativas viáveis e conter possíveis manifestações, o setor da segurança pública foi fortalecido, ampliando a presença de seu braço armado nas ruas20.

Ao fim do terceiro ano de mandato, a Polícia Federal deflagrou a operação Caixa de Pandora - responsável por fiscalizar a distribuição de recursos ilegais à base aliada do Governo Arruda. Gravações do inquérito policial foram exibidas em audiência nacional/internacional e o esquema de corrupção do GDF foi publicizado. O governador, seu vice, o presidente da Câmara Legislativa, deputados distritais e o subsecretário de saúde apareciam recebendo dinheiro de Durval Barbosa, então presidente da Companhia de Desenvolvimento do Planalto Central (CODEPLAN)21. Entre as irregularidades do governo Arruda destacavam-se o suborno na aprovação do PDOT (com o valor de 420 mil reais por voto de cada deputado distrital); o uso indiscriminado de cargos de confiança; as ilegalidades no sistema de transporte. Foi mostrada também uma oração de parlamentares evangélico para abençoar a distribuição de propinas. Os bolos de dinheiro eram escondidos em bolsas e baixas vestimentas.

Surgiu neste instante uma contradição, um caldo político de unificação dos movimentos sociais locais. A retórica da “legalidade e eficiência” do governo não correspondia a aplicação material de sua política, gerando uma Dissonância Cognitiva entre o dito e o visto (SOARES, 2012). A negligência nas políticas públicas, sobretudo em serviços essenciais – transporte, saúde, educação e habitação – somada à repressão social constituiu um clima de tensão que, com as denúncias de corrupção, pôde explodir em forma de luta.

Uma janela de oportunidades foi aberta. Após a exibição midiática de governantes recebendo propina instaurou-se, por distintas organizações sociais, sindicais, partidárias e movimentos dos mais diversos tipos, uma dinâmica de revolta generalizada - com reuniões, encontros paralelos, conspirações. Foi definido em um encontro das diversas forças a convocação para o dia 2 de dezembro de 2009 um ato em frente à Câmara Legislativa do Distrito Federal(CLDF) a fim de protocolar diversos pedidos de impeachment contra o governador.

O ato na Câmara Legislativa ultrapassou os limites propostos, pois os grupos de juventude impulsionaram uma ação conjunta não planejada de ocupação da CLDF que durou uma semana. A ocupação da CLDF foi tanto um espaço de organização interna do movimento – dado que as diferentes forças políticas internas e externas foram levadas a constituir mecanismos de negociação sobre a manutenção e/ou apoio à ocupação – como externas – pois ocupar a Câmara Legislativa era um ato inédito e espetacular que centrou atenções locais/nacionais ao movimento. Assim como no MPL e na ocupação da reitoria, as instâncias de organização da ocupação eram os Grupos de Trabalho - responsáveis pelas tarefas diárias - e as Assembleias - que definiam os rumos do movimento.

Assembleias são um recurso recorrente dentro de movimentos autônomos. Elas são expressões concretas da visão autonomista de ‘dar-a-si própria suas próprias leis’ (…) também expressam o conceito autonomista de auto-valorização, permitindo e incentivando a participação de todos os participantes nas decisões coletivas do movimento. (…) Ela se imbui dentro do cotidiano dos manifestantes, que frequentemente abrem e fecham seus dias com ela. Reúnem todos os participantes juntos, e assim fazendo, criam uma sensação de comunidade (SOARES, 2012, p.34).

 

Saindo da CLDF, o movimento ganhou força e tomou as ruas com diferentes estratégias. Na manhã seguinte à desocupação, uma grande batalha de rua foi realizada em frente à Praça do Buriti. A truculenta repressão policial, ao invés de enfraquecer o movimento, impulsionou a luta e criminalizou as arbitrariedades do governo. Muitas marchas seguiram-se até o fim do ano de 2009, quando a principal estratégia passou aos escrachos nas residências dos denunciados por corrupção. O movimento preparou um bloco do “Fora Arruda” para o carnaval de 2010 com carrinho de som, marchas e alegorias. Estas, porém, tiveram que ser remodeladas de última hora, pois poucos dias antes do evento foi decretada a prisão preventiva do então governador, sob suspeita de que ele estivesse obstruindo as investigações. O bloco “Fora Arruda” passou de bloco reivindicativo a um mix de comemoração da prisão do governador e exigência da punição de “toda a máfia”. Arruda não voltou ao cargo e eleições indiretas foram realizadas para o governo, onde os parlamentares denunciados elegeram Rogério Rosso (PMDB, atualmente no PSD) como governador até o fim de 2010. A repressão policial aos protestos contra esta eleição novamente foram muito violentas. O “Movimento Fora Arruda e Toda Máfia” encerrou suas atividades no aniversário de Brasília (21/05/2010) ocupando por 24 horas o prédio da nova Câmara Legislativa do DF e estendeu sob sua janela uma enorme faixa preta com as palavras PODER POPULAR. Após estes atos foi feito um encontro chamado “Brasília - Outros 50 construindo o poder popular”, composto por diferentes movimentos sociais da cidade. O principal saldo desta atividade foi o balanço das lutas locais, elaboração conjunta de bandeiras e artiulação de perspectivas futuras para a esquerda não institucional da cidade.

Ao retratar a diversidade dos movimentos que contribuíram para a consolidação do movimento Fora Arruda, Cardoso (2011, p. 39) descreve seus quatro principais grupos: o movimento sindical, principal atuante nos diálogos externos e articulações institucionais; o movimento comunitário, presente no diálogo com as comunidades, nas redes, e nas manifestações locais; os assessores de parlamentares e partidos políticos, aplicados em constituir os primeiros espaços de diálogo e negociação; e o movimento de juventude, composto principalmente pelo movimento estudantil. Este último, constituído desde a cultura política oriunda das lutas com estratégia autonomistas, tornou-se o setor politicamente hegemônico nas ações diretas de ocupação e bloqueio de rua.

O autor identifica este grupo com o mesmo que realizou a ocupação da reitoria da UnB em 2008. O repertório de ações é semelhante e muitos participantes de um movimento estiveram no outro. Conclui-se que a identidade do movimento foi formada na ocupação da reitoria em 2008 - esta, por sua vez, teve seu repertório de lutas montado nas lutas anteriormente citadas - e desenvolvida na ocupação da CLDF em 2009. A análise parte do pressuposto de que Brasília teve a constante presença de movimentos sociais e cada geração de lutas mantém - com rupturas e continuidades - características comuns.

 

5. “Santuário Não se Move!“

Gostaríamos de voltar um pouco na história e lembrar de um fato curioso e gracioso. Quando surgiram as denúncias contra o Governo Arruda, em 27 de novembro de 2009, muitos/as ativistas receberam a notícia em uma ocupação que realizavam na Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Aquela ação direta ocorria em defesa do Santuário dos Pajés, uma comunidade indígena de Brasília que há décadas resiste aos projetos de Especulação Imobiliária interessados em converter a área em um bairro de elite chamado Setor Noroeste. Da ocupação da Funai, o movimento seguiu às lutas do “Movimento Fora Arruda” que, além de derrubar aquela gestão do governo e rearticular as forças sociais do DF, criou condições para que o Partido dos Trabalhadores montasse uma amplíssima aliança eleitoral e fosse eleito ao GDF na gestão de Agnelo Queiroz (PT) e Tadeu Filipelli (PMDB). A coligação "Um Novo Caminho", além de suas desventuras e aventuras pelo planalto central, possui uma questão controversa: muitos/as militantes das recentes lutas do DF integram este governo em cargos estratégicos22.

A Especulação Imobiliária foi o eixo central do governo Arruda e inaugurou um novo ciclo econômico no DF. Ciclo este seguido por Agnelo, que manteve o PDOT comprovadamente aprovado com fraudes; a subsequente construção do Setor Noroeste e a ampliação dos empreendimentos imobiliários de luxo a todas as cidades no DF, provocando expulsão das comunidades locais a áreas ainda mais afastadas e pauperizadas. Penhavel (2013) sugere que analisemos esta confluência de mecanismos de expropriação no meio urbano desde a chave analítica da “Urbanização por Expropriação”. Este processo é constituído pela articulação entre mecanismos de estado e mercado para apropriar-se de territórios ocupados por outros grupos sociais e convertê-los em mercadoria23. No caso de Brasília, esta disputa se dá em tons ambientais no Santuário dos Pajés, onde o discurso articulado entre a mídia e a publicidade sugere que o Setor Noroeste será um bairro sustentável, dando um caráter supostamente militante ao consumidor daqueles prédios, que são impulsionados a crer que realizam uma ação transformadora ao comprar um imóvel na área. Todavia, o bairro somente será construído se realizar danos sociais e ambientais - esta é a condição da constituição daquele projeto urbano. Todo esse processo é compreendido pelo autor desde o conceito do Ambientalismo de Espetáculo, cujas implicações são os componentes ideológicos da urbanização expropriadora.

O conflito já existente no Santuário dos Pajés durante o Governo Arruda gestou o movimento social "Santuário Não Se Move!", aglutinando em torno da comunidade indígena ativistas egressos de grupos como o MPL, CMI, Ambientalistas, Movimento Estudantil, Políticos Profissionais, entre outros. O grupo age com o mesmo método anterior: assembleias gerais de organização da luta, ações diretas, escrachos, manifestações, organização de debates e outros eventos de conscientização, produção de material audiovisual, uso da internet para se organizar e atuar. Uma diferença deste movimento em relação aos outros até aqui apresentados é a clara diferença entre a base social da luta (comunidade indígena) e o grupo que a apoia. Esta característica gerou uma série de problemas e possibilidades de atuação, uma vez que a luta em apoio a setores marginalizados coloca as diferenças entre realizar a horizontalidade numa mesma categoria social e entre grupos sociais estruturalmente clivados. Foram muitos os momentos em que a orientação da ação estava mais baseada nas decisões da comunidade indígena que nas opiniões de seus/suas apoiadoras. A questão das diferentes cosmovisões e a solidariedade entre grupos sociais diferentes foi marcante24.

Apesar do apoio ao Santuário dos Pajés ser muito antigo, esta configuração do grupo formou-se no primeiro semestre de 2008, quando começou a maior pressão estatal pela construção do referido bairro. As principais bandeiras do movimento são a demarcação do Santuário dos Pajés como território indígena, a paralisação das obras do Setor Noroeste e a preservação do cerrado nativo em torno da terra indígena. As primeiras ações foram de agitação social e pressão política. Mas em outubro de 2011 as imobiliárias invadiram e iniciaram a construção em áreas até então judicialmente embargadas - numa situação de desrespeito/manobra às ordens de interrupção das obras na área em disputa. O movimento agiu para impedir as obras, sabotar a construção realizando enfrentamento direto na área. Este conflito durou dois meses resultando na garantia da permanência do "Santuário" em sua área e acordos jurídicos sobre a situação legal da área.

O movimento "Santuário não Se Move!" talvez seja, dentre as lutas citadas, o que obteve menos arcabouço institucional que subsidiasse minimamente suas ações radicais. Não se estava em um terreno que não pode ser ocupado pela polícia sem ordem federal (a Universidade), nem em luta contrária a uma lei impopular (o aumento de passagens) e muito menos tinha-se a favor do grupo um escândalo de corrupção que justificasse socialmente as ações. Ao contrário, havia sobretudo o secular racismo/colonialismo estatal direcionado a comunidades indígenas somado à sanha capitalista por expansão de mercado. Na luta em defesa do Santuário dos Pajés, o movimento recorreu à Ação Direta radicalizada como resistência aos tratores de empreiteiras, às empresas de segurança, às ostensivas tropas da Policia Militar com ordens expressas de prender manifestantes25, ordens judiciais incentivando as construções, a mídia local atacando a comunidade indígena e apoiadores/as, o cúmplice silêncio da FUNAI em relação à especulação imobiliária. Um grande marco do movimento foi garantir, em situação institucional completamente adversa e arbitrária, vitórias importantes onde quase ninguém esperava ser possível. Mais que isso, esta jornada de lutas politizou e tornou factível o slogan do movimento de que “A Ditadura da Especulação Pode Ser Derrotada!”.

 

Um balanço necessário

Segundo Saraiva (2010), a especificidade desta geração pode ser apreendida observando as características do movimento autônomo local26. A análise das ocupações como rituais demonstra como as experiências concretas e as dinâmicas de enfrentamento que a geração enfrentou por meio destas Ações Diretas gestaram um modus operandi das lutas no DF, justamente por fortalecerem as relações de solidariedade entre pessoas de diferentes segmentos, grupos e espaços sociais.

 

Algumas características da geração são tratadas a fundo27, em especial a opção pela Ação Direta como Princípio de atuação - ou seja, que os grupos buscam a eliminação das mediações entre as pessoas e a realidade, seja pelo estado, capital ou gestores. Isso quer dizer que a metodologia de movimentação desta geração é realizada tendo como primeira forma de reação aos problemas da sociedade a manifestação de rua, sendo que só posteriormente segue a um processo de enfrentamento, diálogo ou interlocução com as instituições. Implica também que suas organizações buscarão empreender desde dentro relações que combatam as hierarquias internas e estabeleçam relações igualitárias entres seus/suas participantes. Trata-se de uma forma diferenciada da geração anterior, que baseava suas ações num crescente de mobilizações de massa casadas com projetos institucionais de acúmulo de forças. Deste acúmulo se seguiria à disputa de cargos institucionais - por isso a necessidade de lideranças constituídas - e à ocupação cada vez maior da esfera estatal. As lutas sociais seguiriam-se neste processo não ao enfrentamento final entre classes com propósitos opostos, mas sim à constituição de mesas de debate entre estdo, capital, trabalhadores. Grosso modo, esse é o chamado “Projeto Democrático Popular”. Já na Ação Direta a ruptura pública é anterior a utilização da via institucional e não se objetiva com a luta um acúmulo de forças buscando ocupar o estado; ao contrário, a forma democrática e participativa da luta é vista, ela própria, como um acúmulo de forças para acabar com as relações sociais hierárquicas desta sociedade. Igualmente, basear-se ou mesmo participar destas estruturas dominantes só cria relações sociais contrárias à sociedade emancipada que se quer construir. O desenvolvimento destas lutas não busca nem opera em momento algum com a constituição de articulações com setores opostos, de forma que o consenso entre as classes sociais antagônicas não é um objetivo tático. Este movimento valoriza a tensão entre setores com interesses materiais opostos, rumo a um enfrentamento final.

Isso não quer dizer propriamente que esta geração não tivesse relação com instituições ou não realizasse disputas públicas. Justamente o contrário: ainda que minoritária e não hegemônica, parte dos militantes e apoiadores/as eram vinculados às estruturas burocráticas de partidos ou direções sindicais; grande parte das lutas tratam justamente de incursões às instituições do estado, seja disputando projetos de lei, determinações de governo ou mesmo a própria forma das instituições do mesmo. Não fossem os turbulentos apoios de sindicatos, centrais sindicais e parlamentares as lutas realizadas teriam um caráter completamente diferente. E, não fossem questões que tratassem de temas referentes à vida de setores expressivos da sociedade, estas lutas não seriam relevantes. A questão principal era a da autonomia do conjunto de lutadores/as em relação a um ou outro programa político-partidário específico; também da linha tênue entre a crítica radicalizada/utópica no que diz respeito às relações sociais atuais e às possibilidades de transformação imediata possíveis.

Há, sim, uma dissonância entre as lutas de curto prazo (passe livre, paridade, derrubada do reitor/governador, santuário não se mover) e as pretensões de longo prazo (Poder Popular, Socialismo, Anarquismo, Comunismo). Esta disparidade acentua-se justamente pela rejeição pública que o discurso geral do grupo tem em relação à ocupação eleitoral de cargos institucionais por membros do próprio movimento. A compreensão geral seja dos militantes anarquistas, autonomistas, por parte dos partidos de extrema esquerda ou da esquerda dos partidos tradicionais é de que a ocupação dos cargos parlamentares tem no máximo um poder tático de frear avanços conservadores; jamais a possibilidade de imprimir uma revolução por meio das formas atuais das instituições do estado e do capital. Ainda que defendidas, as reformas burocráticas de curto prazo não são o horizonte estratégico.

O problema, todavia, não está na negação destas estruturas, mas na ausência de alternativas de acúmulo de forças por parte dos movimentos que não seja pela ocupação de cargos institucionais, isto é, as estratégias revolucionárias de médio prazo não são apresentadas por parte deste grupo. Do ponto de vista das relações sociais locais, as críticas à oligarquia e especulação imobiliária no Distrito Federal também não são correspondidas a um projeto geral de transformações econômicas e políticas que pudessem reorganizar o DF rumo ao Poder Popular almejado. A situação fica mais tensa quando a estratégia central do grupo é desestabilizar e deslegitimar estruturas institucionais por meio da Ação Direta. Esta lacuna configura um limite do movimento, pois ele converte seus projetos estratégicos não em meios de realizar seus objetivos, mas sim em mecanismos principiológicos. Ou seja, o Poder Popular é simultaneamente horizonte e princípio, mas não um consistente meio de realizar a luta em seus momentos de ascenso e recuo. Dando um exemplo mais claro, não foram constituídos organismos de controle popular sobre a política local que pudessem configurar-se - ainda que embrionariamente - em estruturas permanentes de contrapoder. Some a isto que a apropriação estatal/mercadológica das lutas (seja assumindo/deturpando a bandeira do passe livre, convergindo a força das ruas em campanhas eleitorais para reitor ou governador sem obviamente manter a essência rebelde do movimento); garantindo uma permanência institucionalmente instável do Santuário dos Pajés. Os desdobramentos institucionais imediatos das movimentações não cumpriram as expectativas do movimento: vide a crítica à burocrática e limitada política do passe livre estudantil, às gestões da reitoria e governo pós-lutas e a insatisfação com o Setor Noroeste. Isso não é novidade, pois em nenhum momento estas estruturas institucionais foram objetivos almejados pelo movimento e já se conhecia há muito a capacidade da sociedade capitalista em aglutinar opositores. Por isso a lacuna de táticas para impulsionar desdobramentos sociais concretos das vitórias das lutas torna-se mais visível.

Estas lacunas não permitem, todavia, a avaliação de que as lutas foram unicamente pontuais e não alteraram em longo prazo as formas sociais e políticas na cidade. É notório que este movimento constituiu no DF um conjunto de relações sociais solidárias e críticas ao capital e ao estado. Por meio de suas conquistas esta geração reafirmou a efetiva possibilidade da ação popular organizada transformar a realidade. Talvez não na velocidade e força inicialmente desejadas, mas certamente para um caminho distante do que se criticava anteriormente. Se esta geração criou, como tantas outras, uma ou outra nova elite política, não é de surpreender ninguém. A novidade deve ser observada onde ela de fato está, ou seja, na constituição de um conjunto de lutadores e lutadoras anticapitalistas com mecanismos eficientes de resistência à dominação e cooptação burocrática ou de mercado. E é importante salientar que todas as conquistas do movimento, apesar de limitadas, são avanços políticos inegáveis.

Acreditamos que do ponto de vista das relações sociais na Universidade de Brasília esta geração está chegando ao seu fim ou mudando radicalmente de estágio, tanto pelas condições internas do grupo como também pelas mudanças sociais que se operaram na universidade. A expansão do ensino superior público (por exemplo a expansão da UnB a outros campi e a criação dos Institutos Federais) e privado, os programas de ações afirmativas, graduações voltadas a movimentos sociais, incentivos para a população de baixa renda a realizar o ensino superior e outras medidas semelhantes modificaram sensivelmente o público universitário. Ainda que seja composta por uma maioria de estudantes provenientes da elite, a presença consolidada de outras camadas sociais no grupo de estudantes universitários/as modificou as relações políticas internas do setor. Como os campi universitários estão espalhados pelas cidades do DF, muda-se também a geografia das lutas universitárias, que agora podem ocorrer no centro e nas periferias. Soma-se o fato da maioria dos/das participantes das lutas anteriores se formou e está inserida em outros espaços de luta, coletivos, movimentos, sindicatos, partidos ou governos.

Outro motivo que reconfigura esta geração é a presença organizada de grupos conservadores realizando a séria disputa dos Centros Acadêmicos, DCE e ADUnB (sindicato de docentes) da universidade, ocupando estes espaços com larga votação de estudantes e professores/as. Esta presença de grupos assumidamente direitistas nas disputas internas do movimento estudantil não foi algo enfrentado por nossa geração e nem pela geração anterior. A última notícia que temos de grupos deste tipo com relevância na universidade foi na ditadura militar. Talvez por esse ou por outros motivos a própria composição interna da esquerda da universidade é cada vez mais preenchida por grupos focados em programas próprios e sem tanta capacidade de articulação entre sí como tivemos em nosso período. Os coletivos transversais que desenvolviam lutas em temas específicos enfraqueceram frente às organizações estudantis que possuem, cada uma, seu programa próprio de universidade, país, mundo e militância.

Todavia esta geração não deve ser compreendida como derrotada nem muito menos superada. Suas perspectivas e formas de luta tanto alteraram significativamente as relações e referências políticas locais como têm relação com um amplo e heterogêneo conjunto de atores locais. Trata-se de uma perspetiva de lutas que visivelmente ainda tem muito a crescer no DF, talvez agora não mais identificada com apenas um setor social. Com certeza a Ação Direta logo retornará ao centro da política local, com todas suas implicações possíveis28.

 

***

O livro "A rebelião dos Estudantes (Brasília:1968)" apresenta, por meio de crônicas dos principais episódios, a história de luta do movimento estudantil no período imediatamente posterior ao golpe militar de 1964 chegando ao ápice em 1968 e toda repressão seguinte. É curioso comparar esta história com as lutas da geração que agora estudamos: ressaltam-se as claras similaridades de ser um movimento efervescido, que realizava ações de protesto radicalizadas com táticas semelhantes às atuais (grandes marchas, ocupações/tomadas das instituições de ensino sob controle estudantil; contra-ataques à repressão policial, uso de molotovs, deitar na rua para fechar as vias); também destaca-se a semelhança de ser um movimento realizado com a articulação de estudantes secundaristas e universitários/as junto à à ação concomitante extrapolando o centro da cidade, tomando o conjunto dos núcleos urbanos do DF; o vínculo estreito entre a luta política e a cultural; também são semelhantes as articulações pontuais e desconfiadas com parlamentares que se colocam a disposição para intermediar confrontos institucionais ou retirar manifestantes da prisão.

Por outro lado, as características dos dois grupos diferem entre si quando vemos nas metodologias de 68 a prática deliberada de encontros fechados entre lideranças para definir os rumos da ação; a prioridade dada pelo movimento à disputa das diretorias dos órgãos estudantis em relação às organizações de base (que quase confundiam-se, pois as diretorias eram mais clandestinas que propriamente burocráticas), a definição mais ideológica e programática de cada uma das correntes no seio do movimento. Para além destas aproximações, há a questão central colocada com relação às dinstintas conjunturas em que as disputas das duas gerações realizavam: o movimento estudantil de 1968 realizava lutas radicais contra as instituições federais reconhecidamente autoritárias e repressoras da ditadura (o que justificaria a transgressão institucional), enquanto as lutas atuais realizam atos radicalizados nos limites das instituições estatais que afirmam-se democráticas, com processos aparentemente mais públicos e regulamentados.

Não deixa de ser interessante a coincidência tática em momentos institucionais tão distintos, ainda que os direcionamentos de cada luta sejam de esferas diferenciadas - uma mais federal e outra mais local. A questão que se coloca é: como em um período de aparente abertura política tornou-se tão contundente e adquiriu tantos/as adeptos/as a tática radicalizada e transgressora das instituições? É curioso também que muitos/as militantes notórios/as daquele período tornaram-se hoje políticos profissionais ocupando cargos estatais vinculados a grupos mais à direita ou mais à esquerda no quadro político. E também que muitas/os militantes das lutas atuais são filhos e filhas, netos e netas, sobrinhas e sobrinhos daquele grupo. E que militem, em grande parte, de forma crítica aos caminhos que seus antecessores trilharam.

A geração da Rebelião dos Estudantes é aquela cujo principal líder e mártir é Honestino Guimarães, militante desaparecido e morto pela ditadura militar. Honestino Guimarães dá nome ao Diretório Central dos Estudantes da UnB. Respondendo à questão acima levantada, fica a hipótese de que a Ger'Ação Direta', observando o caminho das gerações anteriores, acreditou/acredita que aquele método de inserção institucional pós-ditadura (que chamamos aqui de Projeto Democrático Popular) estando ou não correto em seu período de gestação, claramente chegou ao seu limite. Se naquela geração a ruptura institucional foi a forma-conteúdo da ação contra o autoritarismo militar, o mesmo caminho foi rearticulado nesta geração como forma de resposta ao avanço neoliberal combinado com a rebelião à burocratização da esquerda hegemônica e à própria burocracia estatal.

Talvez, fazer hoje justiça às bandeiras que a parte de baixo da sociedade sempre defendeu implique em articular a radicalidade dos períodos anteriores com a projeção de um futuro libertário sempre presente. Cremos que a Ação Direta pavimentou o caminho desta articulação histórica e geracional para o hoje e o amanhã de nossas lutas, vidas.

 

NOTAS

1 Ou Paulo Henrique da Silva Santarém, como preferirem. Participante do grupo de estudos Modos de Produção e Antagonismos Sociais (MPAS). Este artigo foi elaborado desde a exposição feita no Seminário "Os Movimentos Sociais nos 50 anos da UNB: Desafios e Perspectivas" realizado em outubro de 2012, onde realizei fala sobre o referido assunto com Morena Marques, principal colaboradora deste artigo– ainda que seja inteiramente minha a responsabilidade por todas as afirmações presentes. Agradeço também enormemente às revisões e contribuições de Caio Csermak, Camila Souza Betoni, Diego Mendonça, Elisa Rosas, Gabriel Santos Elias, Leila Saraiva, Pablo Ortellado e Rafael Moreira.

2 Esta é uma nomenclatura generalista e inadequada, porém expressiva: esta geração tem forte participação juvenil, grande participação de estudantes universitários e, dentre outras, utiliza – ou utilizou – instâncias da militância estudantil como mote de sua organização. Entretanto, trata-se de um grupo que atua em diferentes locais do DF, com presença significativa de estudantes secundaristas, jovens trabalhadores/as sem estudo formal, agitadores/as culturais, entre outras características. Para além da juventude, somam-se uma série de ativistas/militantes que estão fora do padrão socioeconômico, cultural, etário e escolar do que insistem em definir como sua característica central.

3 Daí segue-se uma segunda questão que é a da constituição deste grupo desde uma cultura de lutas forjada na cidade, tanto por características próprias do momento atual, da experiência vivida no ambiente urbano e da interlocução local/global com outras lutas e perspectivas do período.

4Trata-se basicamente de uma política educacional do octênio 1995-2002, quando o país esteve sob o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e do então Ministro da Educação Paulo Renato. Em geral as principais características deste período em relação às Universidades públicas são o fortalecimento do poder docente na gestão universitária; a redução de despesas das universidade públicas, com congelamento de salários, de investimentos em pesquisa e não reposição de quadros perdidos; o ataque à autonomia destas instituições por meio de projetos e lei e iniciativas de controle federal sobre gestão, recursos e poderes das mesmas. No que diz respeito às Instituições Privadas de Ensino Superior, este período foi caracterizado por seu fortalecimento: seu crescimento numérico foi enorme, em forma de faculdades e centros universitários, chegando a um cenário em que os/as estudantes de faculdades particulares superaram os/as de Instituições de Ensino Superior públicas. Em síntese, este modelo é caracterizado pela precarização do ensino superior público de qualidade e o incentivo ao estudo superior privado e sem necessária excelência.

5 No caso do DF trata-se quase literalmente de uma consequência, pois o CMI-Brasília consolidou-se no momento de descenso deste 'movimento de movimentos'. O Movimento de Resistência Global, Anticapitalista ou Antiglobalização - como ficou mais conhecido - foi uma articulação entre diferentes setores cindidos há décadas por suas lutas específicas que uniram-se em torno das pautas comuns de combate às políticas neoliberais globais no âmbito trabalhista, ambiental, de direitos humanos e proteção a comunidades campesinas e tradicionais, por exemplo. As características mais marcantes - porém não únicas - deste período foram as ações diretas radicalizadas, a cultura de rede, os atos simultâneos em várias cidades do mundo - Dias de Ação Global. Cf"Aproximações ao Movimento Antiglobalização" (Ortellado, 2002)

6 O ápice e fim destas lutas no Brasil foi ao final da década de 1990 e começo dos anos 2000, momento em que a geração da Ação Direta começa a se organizar no DF. Foram especialmente relevantes alguns artigos e livros de membros do Centro de Mídia Independente que realizavam um balanço dos limites e iniciativas deste movimento. Destacamos, como exemplos, os livros "Estamos Vencendo - Resistência Global no Brasil" (André Ryoky; Pablo Ortellado. Conrad, Coleção Baderna, 2004); , "Urgência das Ruas" (Nedd Lud org. Conrad, Coleção Baderna, 2002). “Guerra da Tarifa” (Leo Vinícius, Editora Faísca 2004) Estes textos problematizavam, desde a prática recente sobre temas como a Autonomia, Horizontalidade, Anticapitalismo, Dificuldades e Alternativas à mídia; Organização em Redes, resolução de conflitos em organizações libertárias; Relatos, táticas e formas de Ação Direta; Repressões. Todos eles foram muito debatidos no DF em listas, eventos, entre outros, de forma que podemos concluir que o movimento aqui constituiu-se inspirado nas lutas de Resistência Global porém já conhecendo suas autocríticas mais relevantes.

7 Tal iniciativa surgiu porque no início de 2004 ocorreu em São Paulo um Encontro de Grupos Autônomos Nacional, onde uma das deliberações finais era a realização de encontros locais para difundir esta forma de ação política. Organizaram o encontro do DF o CMI-Brasília, o Coletivo Feminista La Carnissa e o Coletivo Anarcopunk Persona Non Grata.

8 O estudo de Farias acaba justo quando a primeira grande movimentação oriunda da cultura anticapitalista chegou ao auge no DF: era a jornada de lutas do Movimento Passe Livre contra o aumento das tarifas em janeiro de 2006.

9 Segundo a CODEPLAN, em 2003 – pouco antes do MPL-DF surgir - o Plano Piloto abrigava aproximadamente 10% da população e concentrava 76,2% dos empregos e renda do Distrito Federal. (Elias e Telésforo, 2010)

10 Falamos do domínio do transporte coletivo por empresas privadas ligadas aos Grupos Amaral, Constantino e Canhedo durante os Governos de Joaquim Roriz (1988-1994;1999-2006). Apesar de uma série de disputas internas, imperou neste período a precarização da empresa estatal de transporte coletivo (TCB), a concessão de linhas a estas e outras empresas privadas sem licitação e a pouca fiscalização aos maus serviços prestados por estes grupos. Estas três lideranças do setor tinham investimentos em setores comerciais locais, propriedade de terras na região e participação politica direta ou indireta na cidade, além do financiamento de campanhas. Um grupo retroalimentou o outro.

11Para entendermos como este movimento chegou a um auge de mobilizações pelo DF nos ativemos a alguns trabalhos, em especial o estudo de Mendes (2007) abordando o choque político que o MPL-DF causou na cidade ao insurgir-se com grandes manifestações baseadas em uma metodologia diferenciada da até então conhecida na cidade. A base principal desta etnografia é o acompanhamento de lutas do MPL-DF, cidade onde se situava a pesquisadora.

12 Parte do grupo que o compôs, todavia, já tinha uma prévia formação política. Mendes (2007) apresenta os três principais setores sociais de onde vieram os/as integrantes do movimento, sendo eles a parte de ativistas do movimento antiglobalização (CMI e Anarcopunks), uma série de militantes jovens em ruptura com os modelos de ação institucional, parlamentar e hierárquica dos partidos políticos e também uma leva de pessoas que iniciaram sua militância política por meio do movimento, atraídos/as em especial pela dinâmica participativa e a radicalidade das lutas que o mesmo desenvolvia.

13 Já ao fim do Governo Roriz, articulava-se no DF um programa de reestruturação dos transportes chamado “Brasília Integrada”. Este foi um dos três principais eixos do programa do governo de José Roberto Arruda (2007-2010), mantido mesmo após sua queda por denúncias de corrupção. Agnelo Queiroz (2011-atualmente) também colocou a reestruturação do transporte coletivo como uma das principais metas de governo em sua campanha. Independentemente das ações efetivas dos governos na área, o transporte tornou-se tema de constante diálogo.

14 Uma organização estudantil que emergiu da Gestão “Autonomia no Movimento D@s Estudantes” (2005-2006), de inspiração autonomista. Criada em 2006, a organização manteve suas atividades até meados de 2009.

15 Programa Universidade para todos (PROUNI) é uma política do Governo Lula criada em 2004 e gerida pelo Ministério da Educação. Este programa oferece bolsas de estudos em instituições de educação superior privadas, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, a estudantes brasileiros, sem diploma de nível superior.

16 A Reforma Universitária é uma reformulação do Ensino Superior em curso no país. A principal questão deste processo é a ampliação do número de universitários/as e diplomados/as no país. O Governo Lula, com diferentes estratégias e atores, tem o objetivo geral de elevar gradualmente a taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais de setenta e dois para noventa por cento e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor de dez para dezoito, ao final de cinco anos, a contar do início de cada plano das Universidades Federais. Esta alteração central tem modificado as estruturas organizacionais, relações internas, missão institucional, diretrizes pedagógicas, filosofias e forma de trabalho nas IFES. Além da precarização, o REUNI é muito criticado pela mercantilização do ensino, pela forma autoritária como foi implementado (por decretos), pelo investimento em ampliação sem inovação nem aumento da qualidade, pelo seu vínculo maior com os interesses de mercado que com os interesses da comunidade. (Ricardo Gandini; Abrantes, Luiz Antônio; Júnio, Antonio Carlos Brunozi; Silva, Fernanda Cristina da; Souza, Alisson Penna De.; 2010)

17 A Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec) foi acusada em 23 de janeiro de 2011 pelo Ministério Público do DF de dar prejuízo aos cofres públicos e atuar como entidade privada. O orçamento previsto para 2008 era de R$ 104 milhões, mas apenas R$ 750 mil seriam investidos em pesquisa e educação. Gastos com a decoração do imóvel funcional usado pelo reitor Timothy Mulholland, na 310 norte, foi de R$ 470 mil, incluindo três lixeiras a R$ 2,7 mil. Da mesma forma, denúncias envolveram desvio de verbas na Funsaúde. Dinheiro para financiar o tratamento de índios Xavantes e Yanomamis foi utilizado para comprar objetos de luxo, como cinco Tvs LCD e 2.500 canetas com ponteiras laser. Fonte: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=1480

18 Neste mesmo ano foram ocupadas inúmeras outras reitorias de universidades públicas pelo país em resistência à Reforma Universitária: UFRJ, UNIRIO, USP, UNCISAL, UFS e outras. A ocupação da reitoria da UNB destacou-se justamente por ter sido uma das poucas que conquistou a renúncia do reitor.

19 Luan Grisolia (2008) ressalta nesta geração o vínculo entre a ação política e a performance constituindo dimensões estético-antiartisticas da luta, em grande parte herdada do movimento contracultural e das referências à geração de 1968. Ele trabalha sob a hipótese de que esta dimensão é politicamente potencial porque "ao ousar no vínculo entre intervenção lúdica, contestação e intervenção de massas, atacam os mecanismos de subordinação da sociedade e revelam que seus consensos são frágeis". Ele trabalha com a sugestão - bastante provocadora, no mínimo - de que as lutas estéticas quando vinculadas à ação direta podem constituir subjetividades libertárias desde a experiência transformadora que se viveu durante a ação. Assim, as mobilizações não são mais somente espaços de reivindicação, mas propriamente o local de constituição de uma consciência anticapitalista.

20 Segundo Cardoso (2011), a relação do governo Arruda com os movimentos sociais ultrapassou os limites da simples repressão, agregando a esta um novo diálogo com instrumentos de cooptação e consenso. Além da violência contra manifestações, o governo “buscava o diálogo com alguns grupos e movimentos, tentando cooptá-los para aplicar políticas que entendia como necessárias”, e estabelecia “espaços de negociação, se mostrando uma administração aberta mas sem encaminhar os acordos” (CARDOSO, 2011, p. 36). “Esse novo padrão de relacionamento, que misturava cooptação política e violência conseguiu fazer com que, durante os três anos de governo Arruda, os movimentos sociais do DF enfrentassem enormes dificuldades" (CARDOSO, 2011, p. 37).

21 As investigações tiveram o apoio do secretário de Relações Institucionais do GDF e do ex-delegado da Polícia Civil, Durval Barbosa, que aceitou colaborar em troca de uma punição mais branda em outro caso de corrupção, revelado pela Operação Megabyte, ainda na gestão de Joaquim Roriz. Barbosa estaria envolvido, ainda, em outros escândalos, como irregularidades na terceirização de serviços prestados pelo Instituto Candango de Solidariedade (ICS) e pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).

Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/11/30/interna_cidadesdf,158092/index.shtml

22 É uma situação estranha, pois o Governo tem recebido severas críticas de movimentos sociais integrados por militantes que também participaram da Ger'Ação Direta'. O Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) - que atua no enfrentamento da Especulação Imobiliária e na defesa do direito à terra por parte de povos originários e da classe trabalhadora - realizou duras jornadas de lutas criticando os programas de governo, seu vínculo com as Construtoras/ Empreiteiras que se gestam como nova elite econômica da cidade. Movimentos contrários às Parcerias Público Privadas do GDF questionam os acordos com empresas privadas para realizar serviços públicos essenciais. O MPL também questionou a nova política de Mobilidade Urbana deste governo apresentando suas lacunas, vínculos com a Especulação Imobiliária e sua concepção que trata o Transporte Coletivo como fonte de lucro e não como direito. Juntamente a isso as greves de professores/as, bancários/as, urbanitários/as e servidores públicos locais são protagonizadas por ações diretas realizadas na base, em geral impulsionadas por militantes daquele mesmo período – são muitos os relatos de tensões nas lutas sindicais entre os grupos tradicionais e estas novas forças recém-chegadas.

23 Urbanização por Expropriação parte de um entendimento elaborado por David Harvey (2006) de que o processo chamado de Acumulação Primitiva tem um caráter permanente na reprodução capitalista e não é, portanto, um processo ultrapassado. Por isso precisa ser renomeado por Acumulação por Despossessão (ou Expropriação). Daí segue-se a proposta de Penhavel da chave analítica da Urbanização por Expropriação como "a utilização dos instrumentos de organização, regulação e expansão das cidades em benefício da acumulação de capital." (PENHAVEL, 2013, p. 15)

24 Não se trata, porém, de algo novo ou estranho a esta geração. É constante a relação com movimentos sociais locais pelo menos desde a constituição dos coletivos ExtraMuros e do Estágio Interdisciplinar de Vivência, passando p.e. pelas atuações no Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), Movimento de Catadores e Catadoras de Materiais recicláveis (MNCR), Coletivo da Cidade e Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD). O centro desta reflexão foi acerca da nomenclatura "estudantes da UNB" mas, desenvolvendo o que ressaltamos acima (na nota de rodapé nº2), cremos que esta geração poderia igualmente ser analisada desde os movimentos sociais populares dos últimos dez anos.

25 Destacamos especialmente a repressão cavalar direcionada a estas movimentações. No Longa-metragem do CMI-Brasilia chamado “Sagrada Terra Especulada: A luta Contra o Setor Noroeste” (2011) apresenta-se a questão indígena de forma detalhada, além do esquema de especulação imobiliária montado para construção do setor noroeste durante o governo Arruda. O Curta metragem “A ditadura da especulação” (2012) também do CMI-Bsb é um Thriller de violentas cenas de combate empreendidas pela gestão Agnelo contra o movimento social que - por meio da mesma metodologia de Ação Direta - criou as condições políticas de sua eleição.

26 Cf. SARAIVA, Adriana. Movimentos em movimento – uma visão comparativa de dois movimentos juvenis no Brasil e nos Estados Unidos. Brasília: UNB, 2010. A tese de doutorado de Adriana nos auxilia na construção da hipótese de que foram os movimentos autônomos, empreendendo novas dinâmicas ao movimento social de juventude, que atuaram definitivamente como um vetor à radicalização destas lutas.

27 Cf. SARAIVA, Adriana. Movimentos em movimento – uma visão comparativa de dois movimentos juvenis no Brasil e nos Estados Unidos. O texto centra-se especificamente no Movimento Passe Livre, analisando sua atuação em diferentes eventos. Esta opção tem o problema de talvez obliterar uma série de outras relações paralelas que também são constitutivas deste período. Todavia, pelas características próprias da geração que ela observa no texto este problema é minimamente dirimido: talvez pela característica denominada “Multimilitância” (a participação simultânea em diferentes coletivos, espaços, movimentos e lutas específicas), através da análise de um movimento social pelo qual passaram centenas de militantes pode-se ter em conta esta diversidade de lutadores/as. A isto soma-se a Fluidez na atuação desta geração. Há uma dificuldade em estudar este período pois os/as militantes sempre estavam circulando em diferentes posições a cada momento. A opção por pensar como um movimento específico comportou-se e remoldou-se durante grandes eventos analisados balanceia o que há de constante e inconstante nesta geração. Dado também que em diferentes momentos estudados o Movimento Passe Livre atuou em rede com outros grupos, a diversidade de organizações presentes pode ser percebida. A qualidade final deste estudo é falar sobre uma multidão, todavia escolhendo desde onde retratá-la, entendendo-a em sua história e desde os seus próprios conceitos.

28 O destino sempre nos reserva agradáveis coincidências. Este artigo foi finalizado e enviado à revisão ortográfica dia 15/05/2013 para posterior publicação. Ou seja, quase um mês antes das "Jornadas de Junho" - mobilizações nacionais pautadas na Ação Direta e em movimentos sociais muito semelhantes aos que aqui estudamos. Curiosamente ou não, foi o Movimento Passe Livre que desencadeou novamente todo este processo em uma jornada de lutas contra o aumento da passagem, desta vez em São Paulo. E, mais que isso, creio que estava desgraçadamente certo quando afirmei que a Ação Direta voltaria à tona com "todas suas implicações possíveis": tentativa de apropriação pela direita, repressão brutal do estado dito democrático, tensionamentos sociais, emergência política de atores marginalizados. Enfim, me falta espaço e ainda é cedo para realizar um amplo balanço desta luta que agora nos toma de assalto. Mas o GAP entre finalizar o artigo e publicar-lo pôde, ao menos tacitamente, confirmar minha afirmação. A Ger'Ação terá uma loga vida por este caminho. Por isso é tão importante cuidarmos com carinho de nosso movimento, analisando-o seriamente e superando nossos principais problemas. Quem sabe assim alcançamos nossos principais objetivos. (Nota escrita dia 18/10/2013)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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