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Três semanas na Venezuela: Diário de uma carioca na República Bolivariana - Parte 2

Agosto 10, 2017 - 13:55
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No dia seguinte, tivemos a notícia de que mais um jovem havia sido morto durante os protestos, dessa vez, por ferimento de bala. Decidimos ver de perto uma manifestação, pelo menos a concentração. Em geral, as batalhas diárias acontecem nos luxuosos distritos do leste da cidade, como Chacao, Altamira e Sucre. Nesse dia, os manifestantes haviam combinado de levar excrementos para atirar na polícia. A convocação foi feita pelas redes sociais: Whatsapp, Twitter, Facebook… Voltamos à Praça Altamira, no momento em que a multidão começava a se concentrar. No caminho, conversamos com algumas estudantes de Caracas, que se manifestavam contra a nova assembleia constituinte, levando cartazes e camisetas: “Não faz sentido, a nossa constituição é recente. Essa é uma manobra de Maduro para se perpetuar no poder”, disse a mais jovem.

Na praça, a sensação era de estar num dos protestos contra Dilma, na Praia de Copacabana. A maioria, pessoas brancas, de classe média, usava um boné com a bandeira da Venezuela. Outros levavam escudos feitos à mão, de madeira ou papelão reforçado. Cada um fazia seu desenho e passava sua mensagem. Um grupo de cinco mulheres de cerca de 25, 30 anos, moradoras de Caracas, levava tabuletas cuidadosamente desenhadas: uma pomba branca com estrelas prateadas e a palavra “paz”; uma imagem de Jesus Cristo segurando a bandeira da Venezuela; uma mulher nua de costas na frente da bandeira com a mesma inscrição “Paz”; várias mãos coloridas e a frase “Esta lucha es de todos”. Ambulantes vendiam água, outros bonés e camisetas com a bandeira da Venezuela. Um grupo de mulheres mais velhas, de cabelos tingidos de louro, conversava animadamente com suas bocas preenchidas, testas lisas e olhos repuxados. Começaram, então, a pipocar os “guarimberos”, jovens com pinta de black block, com capacete, moletons e máscaras de gás ou de mergulho, indiferentes ao forte calor de verão.

Nos acercamos de um grupo de três jovens amigos, de 21, 22 e 18 anos de idade, da província de Arágua, a três horas da capital. “Estamos com o rosto coberto porque aqui prendem todos os que estão contra o regime... Vamos na frente de batalha, abrindo caminho, protegendo os outros manifestantes... Os guardas nos reprimem, usam bombas, gás lacrimogênio, mangueira com pregos, atiram, atropelam com tanques...”, disse o primeiro com quem falamos, contabilizando mais de 300 feridos e dez pessoas mortas somente naquela semana. “Tem gente de todo o país”, explicou. “Chegamos domingo. Estamos a trabalho e a estudo. Viemos por uma semana”, contou o estudante de uma universidade católica, que levava um escudo com uma cruz vermelha. Outro grupo de jovens vinha do estado de Miranda: Joe fazia engenharia ferroviária em Charallave, Universidade da Unesco; Toga, direito, na Universidade Bicentenária de Arágua (San Antonio de los Altos); e o outro, que não quis se identificar, trabalhava em uma empresa de construção. Num ritmo absolutamente frenético, que mal dava para entender, Toga disse que lutava por liberdade. ”Quem se cansa perde”, disse. Por que vieram de tão longe para protestar, perguntei. “Porque aqui é uma manifestação a nível nacional, uma organização... Inclusive trancam o túnel para que as pessoas não passem. Levamos cinco horas para chegar, a pé, porque não deixam passar ônibus, carro, nada”, explicou Toga. Por que vão na frente de batalha, perguntei. “Porque temos que defender nossa pátria, queremos liberdade, entende? A política desse governo atual fracassou. Necessitamos mudar essa ideologia”, respondeu Joe. “Desde que começou o governo Chávez nossa vida piorou. Corremos perigo porque há muita insegurança, por todos os lados”, falou o jovem que trabalha em construção. Se houvesse eleições este ano, que partido apoiariam, perguntamos. “Aqui, 80% dos venezuelanos apoiam a oposição. Vamos apoiar um candidato que nos represente, não sei ainda...”, disse Toga. “Mas não vou negar, na primeira vez, votei em Chávez, votei enganado”, confessou. Dos cerca de 15 guarimberos com quem falamos, só um era morador de Caracas. A maioria vinha de outros estados – alguns a centenas de quilômetros – e eram de origem pobre. Em geral, tinham os olhos vermelhos e um discurso político pouco aprofundado.

Da manifestação, tomei um táxi (certamente pirata) caindo aos pedaços, sem espelho retrovisor, sem farol, com a porta amarrada e o forro do teto furado – havia também a opção de moto-táxis. Precisava ir ao escritório da empresa aérea para resolver um problema com a passagem. A oficina ficava a dez minutos da manifestação e estava funcionando normalmente.

No dia seguinte, fomos até a Universidade Bolivariana, escola pública superior criada por Chávez (a mesma rede de faculdade na qual havia estudado o coordenador do parque Alí Primeira). Lá, conhecemos o estudante de arquitetura Aarón Troconiz, de 27 anos, filho de família humilde, cuja mãe bacharelou-se aos 30 anos em uma das missões bolivarianas. “Há um grupo legítimo de manifestantes mas lamentavelmente há também grupos extremistas e a oposição paga sua viagem e sua hospedagem. Eu sei porque eles mesmos me disseram… Há uma manipulação sem limites. Para os líderes da oposição, quanto mais jovens mortos melhor”, falou ele. “Logo no início, Chávez apareceu com esse discurso de que grande parte da população era explorada por uma minoria com dinheiro. Era um discurso necessário. Mas acho que excedeu. Deveria ter freado um pouco antes porque gerou demasiada polarização no país e um rechaço do pobre ao rico e do rico ao pobre”, explicou. Aarón contou também sobre sua amarga convivência com o paramilitarismo em outra universidade, Luz, em Maracaibo, no estado de Zulia, ocidente do país. Segundo ele, uma delinquência organizada se instalou sob a autonomia da universidade pública, comandando narcotráfico e corrupção. “Eu pertencia a um centro de estudantes e, ao ser eleito presidente do diretório, fui ameaçado por não aceitar o esquema. Tive que sair. Acabei perdendo cinco anos de estudo porque aqui não há equivalência entre as universidades”, contou.

“Não estivemos na manifestação de ontem. Aqui na Universidade Bolivariana não estamos de acordo com essa forma de protesto. Para nós a arma do estudante são os livros e não as pistolas”, disse Víctor Medina, estudante de Economia Política, de 23 anos, vestindo uma camiseta com uma estrela vermelha. Segundo Víctor, os estudantes dali estão num outro movimento: “Estamos iniciando um processo de escutar os interesses dos estudantes em prol de iniciar discussões sobre o processo de constituinte pelo qual o país vai passar. Temos que aportar nosso conhecimento, nosso trabalho. Estamos nas salas escutando as propostas, investigando, criando ideias. Essa é a forma de a universidade fazer revolução, através do diálogo e da paz. Se há diálogo, há democracia”. Ouvimos críticas de que os estudantes daqui são doutrinados e não têm o pensamento livre, dissemos. “Depende do que eles chamam de pensamento livre. O programa de formação das universidades clássicas depende do modelo educativo neoliberal, que responde a uma elite específica. Aqui, colocamos em debate essa forma de educação que está concebida para que a pessoa não esteja preparada para pensar, para discutir, para aprender todo o processo. Creio que a universidade bolivariana nos ensina as diferentes visões ideológicas da história mundial. A universidade bolivariana coloca em prática a dialética”, afirmou.

Saímos de lá para a Universidade Central de Venezuela, escola superior particular, instalada a poucos metros, em um grande e moderno campus. “Estou totalmente a favor das manifestações”, disse Samuel, de 27 anos, formado em engenharia física, vestindo uma camiseta com uma grande marca da Abercrombie & Fitch. “Não aguentamos mais essa situação. O dia a dia do venezuelano é extremamente difícil. Saímos na rua para comprar comida e não conseguimos. Temos medo que nos roubem. Aqui a educação não prospera. Acho que as pessoas estão menos preparadas. Nos colégios faltam professores”, disse ele, contando que de quatro anos para cá as coisas mudaram para pior. “As leis de educação que saem são insolitamente absurdas. Por exemplo, a 6696 não permite que numa sala tenha mais do que um percentual reprovado. Eu dou aulas de matemática e, quando o aluno vai mal, tenho que fazer mágica. Esse governo pensa em quantidade e não em qualidade. Não interessa que as pessoas saiam bem preparadas”, disse com relação ao déficit de conhecimento que vê nos recém-graduados. “Eu falo muito de educação porque é a minha área. Mas isso está por todos os lados. Há um par de anos, as pessoas eram muito reservadas e não faziam comentários. Agora, aonde quer que você vá, vai ouvir gente falando mal do governo. Porque não funciona”, afirmou. Segundo Samuel, depois de Chávez a situação piorou muito. “Não dá para se organizar financeiramente. Se você vai comprar um sapato, hoje custa sessenta mil, se vai amanhã ou uma semana depois, custa o dobro. Uma inflação absurda... Hoje as pessoas não se preocupam mais em comprar sapato, roupa, mas em comer. Se comer já está bom. Isso não é qualidade de vida. Antes um jovem de 23 anos estava preocupado em outra coisa, em se preparar para a vida. Agora, em como aportar dinheiro em casa”, disse o jovem que ajuda financeiramente os pais embora seu salário seja muito baixo: “Professor na Venezuela ganha uma miséria”. Para ele, não há tempo a perder. A sociedade não pode esperar até a próxima eleição presidencial, marcada para 2018. “O melhor diálogo são eleições presidenciais. Dizem que é democracia, então tem que ouvir o povo. Por que evitam todo tipo de eleições?”, perguntou.

“A vida na Venezuela está muito difícil. Não há dinheiro para nada. Hoje trabalhamos apenas para comer. Não dá mais para o resto, para comprar roupa... Antes nossos pais nos ajudavam, agora não. Nós é que ajudamos nossos pais. A vida piorou muito”, disse Patrícia, de 22 anos, estudante de administração de empresas.

No dia seguinte, fui ao Museu de Arte Contemporânea de Caracas (MACC). Tomei o metrô e, depois que saltei na estação correta, custei a chegar ao local. Definitivamente, a cidade não está preparada para receber turistas. Faltam placas de sinalização nas ruas, embora não faltem luminosos com a foto de um soldado ninja portando uma metralhadora e a recomendação: “Não pague por sequestro. Denuncie.” Depois de algumas voltas inúteis em uma zona comercial movimentada, cheguei finalmente ao museu. Perguntei por uma cafeteria ou um lugar onde pudesse fazer um lanche, mas fui informada de que estava fechada. Me indicaram o local mais próximo: um centro comercial decadente que funciona no subsolo de um enorme edifício. Só depois descobriria que o local já foi referência da modernidade caraquense – construído na década de 70 para uma classe média em ascensão, o prédio faz parte do Complexo Parque Central, o qual inclui também o museu. Entrei numa padaria perdida em algum lugar do passado, vazia e praticamente desabastecida. Perguntei se havia sanduíche ou algo para um lanche rápido e os atendentes prontamente me despacharam, dizendo que não havia nada. Só ao sair percebi a fila que se alongava pelo corredor do sujo centro comercial. Era a fila do pão! A sensação é que a vida na padaria girava em torno disso. Sem muita saída, acabei me submetendo a uma pequena pizzaria bastante suspeita. Só depois de pagar, percebi que a loja ficava exatamente em frente a um banheiro muito mal cheiroso. Também só depois percebi que a vitrine onde ficava a pizza estava cheia de moscas. Reclamei com o dono, que pediu para o funcionário ir lá abanar. Tampar a pizza nem passou pela cabeça dele...

De volta ao belo e enorme museu, me deleitei com obras de Victor Vasarely (artista húngaro, pai da OpArt), com penetráveis do artista venezuelano Jesús Rafael Soto (outro pioneiro na arte cinética), com as impactantes esculturas da francesa filha de venezuelanos Marisol Escobar (Pop Art), além de Picassos, Mirós, Boteros... Tive também a sorte de conversar com o escultor Javier Level, que expunha no local. Ele me contou da dificuldade que teve para montar a grande mostra que fazia em uma das galerias, "Espejos de inframundos". “Se não há dinheiro para a comida, imagina para a cultura. A situação é precária. Para montar a exposição, tirei dinheiro do meu próprio bolso”, falou. Javier contou também do boicote que estava sofrendo: “Tenho amigo que não apareceu por aqui. Disse que não é hora de pensar em exposição. Outro disse que não vinha por ser um museu do governo”.

Uma curiosidade de Caracas é que pelas ruas, há muito poucos outdoors, anúncios ou publicidade. A cidade está protegida das grandes marcas. Por outro lado, o rosto de Chávez é onipresente, seja nos muros, em cartazes e até nas fachadas laterais de prédios públicos.

No dia seguinte o destino seria a cidade modelo do projeto socialista venezuelano. Considerada a ‘menina dos olhos’ de Chávez, Cidade Caribia foi concebida como parte dos projetos do programa social "Gran Misión Vivienda Venezuela". Embora quiséssemos passar despercebidos, ao solicitar um táxi no hotel, fomos sorteados com um sedan preto, luxuoso. Ao saber que éramos jornalistas, o taxista resolver seguir por uma zona mais antiga da cidade. Subimos uma encosta arborizada, que nos levou a uma bela avenida muito bem cuidada que contorna a cidade. Dali, passamos por algumas vivendas públicas, como uma planejada e construída pelos próprios moradores, com um estilo arquitetônico que tem muito a ensinar ao Minha Casa Minha Vida. De lá, tomamos o caminho do antigo bairro La Pastora, com casas baixas e ruas estreitas. Subimos e descemos várias ruas e ruelas até desembocar na estrada. Em cerca de 15 minutos, estávamos na Cidade Caribia.

A localidade fica a mil metros de altura, cercada por montanhas verdes. Na entrada, uma guarita da Guarda Bolivariana nos recepcionou. Parecia o acesso a um condomínio de classe média ainda em construção. Apesar de asfaltadas, as ruas não têm calçada. Novos e simples, os prédios em geral são baixos, de quatro a cinco andares. Na lateral de alguns, sobressai o jamegão de Chávez, assinando o empreendimento. Paramos o carro em frente a um dos edifícios e puxamos conversa com um grupo de moradores. Jose Martinez, de 48 anos, de origem colombiana, contou que vivia há cinco anos ali. “Morávamos em uma encosta que desmoronou por conta de uma chuvarada. Fomos para um alojamento do governo até sermos transferidos para cá”, contou. “Gosto de morar aqui. É um pouco longe, mas não troco por nada”, afirmou. Sobre as manifestações disse: “Protestos, aqui não. Pessoalmente eu queria que tudo isso acabasse. Para mim, só atrapalha. Na hora de ir pro trabalho está tudo parado. Deveriam fazer um acordo”. Acompanhado de sua mulher, Luz, e um casal de filhos pequenos, José nos levou para conhecer a horta atrás do prédio. “Fizemos o roçado e cercamos. A capa vegetal está um pouco maltratada mas pega”, disse, mostrando os pés de pimentão, cebolinha, coentro e o local onde ia plantar milho. “É para consumo próprio, mas também vendemos na comunidade”, explicou. A vizinha apareceu com uma bandeja de café. “Chávez foi muito bom, mas a verdade é que Maduro não é Chávez”, disse José sobre os problemas de abastecimento. Em seguida nos convidaram para conhecer o apartamento. A sala arejada era iluminada por uma grande janela que dava vista para o campo – onde se via a horta. Três poltronas de chenile faziam jogo com uma mesinha de canto e uma estante com o computador. Sobre outra mesa, uma TV de 24 polegadas, de tubo ainda. Do outro lado, sobre a mesa de jantar encostada na parede, abria-se uma janela para a cozinha. Na outra extremidade, dois periquitos vivos empuleiravam-se num longo galho preso no chão. Enquanto Luz preparava arepas de queijo na cozinha, José orgulhosamente nos mostrava a casa: três quartos, dois banheiros, cozinha e área de serviço. Num dos quartos, dormiam os dois filhos, o outro era usado como depósito e, o terceiro, era o do casal, com guarda-roupa, televisão e uma cama caprichosamente coberta por uma colcha de cetim bege e almofadas... Sobre a crítica com o processo eleitoral de Maduro, explicou: “As eleições adiadas foram as de prefeito e governador. Para a eleição presidencial, falta um ano. Falta pouco. As pessoas deveriam esperar”, disse. A conversa foi tão longa que nem tivemos tempos de ver de perto as escolas, centros de saúde e repartições públicas da Cidade Caribia. Mas já tínhamos material suficiente para a matéria do dia.

Seguramente, Venezuela não é para principiantes. Ir sem roteiro e tentar montar a viagem em cima da hora é um grande desafio. Na internet há pouquíssima informação sobre transportes. Além de as companhias aéreas venezuelanas não fazerem parte dos sites de busca de passagem, os sites das companhias aéreas e de ônibus são muito simplórios e dão pouquíssima informação. Ao perguntarmos às pessoas como se faz para comprar uma passagem aérea ou de ônibus, a resposta é a mesma: tem que ir diretamente a um escritório ou agência de viagens. E algumas companhias aéreas não vendem por intermediários, só em seus próprios escritórios, de forma que ir até uma agência de viagem pode não resolver. E, mesmo no escritório da companhia, muitas vezes só é possível comprar o bilhete com 24 horas de antecedência. Enfim é um rolo! Foi uma maratona conseguir comprar o bilhete para Barcelona, capital do estado de Anzoátegui. Mas conseguimos. Por outro lado, há que se reconhecer: o transporte na Venezuela é muito, muito barato! A passagem aérea para uma distância de 340 Km custou apenas oito dólares! Não há quem entenda os preços na Venezuela.

No dia seguinte, acordamos cedo para tomar o avião – nos voos domésticos, a recomendação é chegar com três horas de antecedência para garantir o assento! Viajamos por uma companhia aérea nacional, Laser. A viagem foi de meia hora e tranquila, mas a chegada das malas na esteira demorou mais do que o voo, enquanto éramos recepcionados pelas figuras de Hugo Chávez e Maduro coladas em imensos painéis na janela. Como não tínhamos decido o roteiro dos próximos dias, ainda no aeroporto, fomos imediatamente aos balcões das companhias aéreas nos informar sobre os voos disponíveis a partir de Barcelona. Fomos também a uma oficina de informação turística onde compramos um ótimo guia com o roteiro de Venezuela ao Brasil por terra, entrando por Roraima. Quiçá seria uma possibilidade, dependendo do que encontraríamos pela frente. No aeroporto também alugamos um carro.

Na Venezuela, a maioria dos veículos novos em circulação é de fabricação chinesa. Em comparação com os carros em ótimo estado que se alugam no Brasil ou em outros países, esse era um Cherry castigado (amassados e arranhões na lataria, assento furado...). Entretanto, em comparação com os pré-históricos Oldsmobile, Dogde Dart, Mustangs, Landaus e Mavericks que circulam pelas ruas era um luxo. Não tínhamos do que reclamar. Saímos do aeroporto e decidimos ir direto a outra cidade próxima, Puerto la Cruz, que parecia um pouco melhor para se hospedar. Antes, fomos conhecer a grande refinaria de petróleo situada na região, quer dizer, passamos ao largo, pois não nos deixaram entrar. O calor beirava os 36 graus e Puerto la Cruz, ao contrário do que esperávamos, era feia e inóspita. Pelas grades nos bares, dava para ter ideia do nível de violência do lugar.

No dia seguinte, após colocarmos os trabalhos em dia com uma internet bem lenta, saímos para fazer algumas entrevistas. Perguntamos ao recepcionista como podíamos trocar dinheiro. “Não sei. Talvez a dona da loja ao lado, pois ela de vez em quando viaja ao exterior, mas ela não está”, respondeu ele. Fomos caminhando em direção ao centro. Passamos por uma oficina mecânica e decidimos perguntar sobre a questão de reposição de peças de carro, um dos inúmeros problemas de abastecimento na Venezuela. O dono não quis entrar em detalhes. Disse que trabalhava para o estado consertando caminhões e não queria arrumar problema. Mas explicou que há muito poucas montadoras de carro na Venezuela atualmente, muitas foram expropriadas e outras deixaram o país. “Quase não se fabrica mais nada. As peças são importadas, e, por isso, caríssimas”, contou. Não por acaso os carros estão caindo aos pedaços pelas ruas. Com criatividade, há quem fabrique os próprios componentes. Comprovamos isso, dias depois, com um senhor que nos mostrou como improvisava uma peça para o motor com papelão...

A zona principal da cidade de Puerto la Cruz fica à beira mar e termina num calçadão, ao lado de uma praia nem um pouco convidativa. Comemos num bom e tradicional restaurante de frutos do mar, onde conseguimos trocar dinheiro. Era um fim de tarde de sexta-feira e havia um concerto de música ao ar livre, promovido pelo governo. O conjunto era bom, mas todas as letras, eu disse TODAS, eram políticas e exaltavam ora a revolução bolivariana, ora Chávez, ora Maduro, ora Simón Bolívar... Um grupo de 30, 40 pessoas, na frente do palco, uniformizado com camisetas vermelhas, dançava e aplaudia efusivamente, sem contagiar os que assistiam sentados na mureta da praia. O restante das pessoas passeava indiferente, em meio a barraquinhas de artesanato, arepas, pipoca... A movimentada licoreira do outro lado da rua atraía grande quantidade de pessoas com bebida alcóolica na mão. Mais à frente, um inusitado jogo de marionetes criado pelo bonequeiro Manuel Yepez era a alegria a meninada. Como celular é um produto importado e caro, as crianças venezuelanas ainda não têm os olhos grudados nas telinhas. Os celulares estão nos bolsos dos adultos. Eu disse bolsos, pois smartphones são exceções nas mãos das pessoas.

 

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Três semanas na Venezuela: Diário de uma carioca na República Bolivariana - Parte 3

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