Olga – uma pequena homenagem (e algumas reflexões)
(por: Antony Devalle*)
No dia 23 de setembro de 1936 (ou seja, há 80 anos), o governo do Getúlio Vargas, ainda antes de impor o Estado Novo (foi e 1937), enviou a Olga Benario, grávida, à ditadura nazista. Ela havia sido presa no dia 5 de março daquele ano, quando, após a tentativa de tomada do poder central do Brasil por setores da Aliança Nacional Libertadora (ANL), especialmente comunistas, em 1935, estava escondida no Méier, no subúrbio carioca, junto com o Luís Carlos Prestes, de quem estava grávida. Ficou famosa a cena heróica em que ela se coloca entre a polícia e o Prestes no momento em que a polícia ia atirar nele.
Depois dessa prisão, a Olga nunca mais viu o Prestes. O chefe de polícia do Rio de Janeiro, então capital do país, o Filinto Müller, se empenhou especialmente pra capturá-los. Sem direito a defesa, a Olga foi levada diretamente da prisão pro navio La Coruña, cujo capitão recebeu ordens dos governos brasileiro e alemão pra ir, sem escala, até Hamburgo, na Alemanha. Não parar em nenhum porto no caminho era pra evitar que trabalhadores portuários libertassem a prisioneira. Havia experiências de portuários terem feito esse tipo de ação na Espanha e na França. Junto com ela, foi embarcada a Elise Ewert, comunista alemã que participou da tentativa de tomada do poder em 1935 (a ação foi em parte articulada pela Internacional Comunista) e era companheira amorosa do Arthur Ewert, que sofreu torturas particularmente severas, que o deixaram louco.
O Vargas sabia muito bem o que significava entregar a Olga pra Alemanha nazista. Afinal, ela era comunista e judia. Os dois grupos que os nazistas mais odiavam. Como se não bastasse, ela já havia sido presa na Alemanha, em 1926, junto com seu então namorado, Otto Braum, por causa da repressão às suas atividades revolucionárias. Depois que foi solta, organizou uma ação na qual libertou o Otto Braum da prisão de Moabit. Uma ação do mesmo tipo de heroísmo que teve anos depois, no momento da sua prisão e do Prestes. E por conta disso tudo, a Olga estava pros nazistas num cartaz de Procura-se. O Vargas sabia muito bem que os nazistas levariam a Olga prum campo de extermínio e que muito provavelmente ela seria assassinada. Mesmo assim, ele a entregou pros nazistas.
E foi isso mesmo que aconteceu. Olga foi levada pra prisão de Barnimstrasse, em Berlim, onde, graças à grande campanha mundial feita pela sua sogra, dona Leocádia Prestes e a irmã mais jovem do Prestes, a Lígia, conseguiu amamentar a filha, Anita Leocádia Prestes (hoje professora de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro) até os 14 meses e que ela ficasse com a avó depois disso. Pouco tempo depois, a Gestapo, polícia da ditadura nazista, enviou a Olga pro campo de Ravensbrück e depois pro de Bernburg, onde foi assassinada numa câmara de gás.
Não concordo com o caminho político geral da Olga, pois ela era, na prática, stalinista. Considero que muito bem intencionada. Mas influenciada demais pelo stalinismo. No mesmo contexto em que ela foi presa e sofreu terrivelmente, os stalinistas perseguiam os trotskistas na União “Soviética” e sabotavam o campo republicano, especialmente sua parte socialista na Espanha, onde esse campo estava lutando numa sangrenta guerra civil contra os franquistas, que tinham o apoio do nazi-fascismo. Os stalinistas não apenas não ajudaram suficientemente o campo republicano, mas também sabotaram seus esforços, especialmente os revolucionários (ao mesmo tempo em que havia uma guerra civil, havia uma revolução social(ista) em curso), e depois perseguiram, inclusive fisicamente, com prisões, torturas e assassinatos, os trotskistas e os anarquistas (o anarquismo teve uma imensa influência na Revolução Espanhola e é em grande medida a sua alma). Os crimes do stalinismo na Espanha foram ainda mais graves quando consideramos que ali estava sendo um grande ensaio pro que veio a ser a Segunda Guerra Mundial. Ali se estava definindo o futuro de modo muito direto.
Apesar disso, valorizo muito a Olga. Considero que ela sonhou e acreditou, como o Apolônio de Carvalho, que participou das Brigadas Internacionais lutando ao lado dos republicanos na Espanha, que vale a pena sonhar. Que ela, acreditando que o caminho adotado era o mais adequado, lutou de corpo e alma, de modo muito profundo. Por isso, apesar de discordar dela, a respeito profundamente.
O Getúlio Vargas desempenhou um papel muito importante na história do Brasil, com várias contradições (uma síntese talvez seja que tenha sido o pai dos pobres, mas também a mãe dos ricos). Na Carta-testamento que deixou no seu suicídio, ele menciona, corretamente, que seus opositores pela direita queriam derrubá-lo principalmente por causa do seu esforço pra que o Brasil alcançasse uma independência econômica. Uma peça-chave na busca por essa independência, provavelmente a principal, foi a criação da Petrobrás. Ela não foi obra do Getúlio. Foi obra da luta de setores do povo brasileiro na campanha O petróleo é nosso. Mas o Getúlio acabou levando adiante a vitória, ainda que incompleta, dessa campanha. E, sobretudo, naquele contexto histórico, o Getúlio representava um caminho que não agradava o imperialismo, especialmente dos Estados Unidos. Vários historiadores consideram (e concordo com essa análise) que, com o seu suicídio, em 24 de agosto de 1954, o Getúlio adiou o golpe, que acabou sendo concretizado dez anos depois, em 1964. O Getúlio foi uma figura política complexa. Essa parte da sua história não deve ser esquecida. Mas tampouco deve ser esquecida a parte da entrega da Olga pros nazistas. Entre outras partes.
A Petrobrás (hoje Petrobras) continua no centro das disputas geopolíticas. O aprofundamento aceleradíssimo da sua privatização é parte do aprofundamento aceleradíssimo da (re)colonização do Brasil. O que está escrito sobre ela na Carta-testamento, ainda que com uma atualização e sem ingenuidade, continua muito atual. E, talvez mais do que por causa dos agentes diretos desse aprofundamento aceleradíssimo da privatização, o que está acontecendo com a Petrobras se deva àqueles que, dentro dela, agem no dia-a-dia, há muito tempo, como se fossem bons burocratas de uma ditadura nazista. Àqueles que fazem suas planilhas ou qualquer outra tarefa, alheios às injustiças cotidianas, e acham que estão apenas fazendo o seu trabalho. Àqueles que não teriam coragem de ser da temida SS, pois não teriam coragem de apertar o gatilho, mais por covardia do que por qualquer outra questão, mas que não se incomodariam em fazer toda a parte burocrática pra que muitas e muitas pessoas fossem enviadas pros campos de extermínio.
*Antony Devalle é membro do grupo de base petroleiro Inimigos Do Rei e militante da tendência político-social Organização Popular - OP.