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Pirataria Científica - Usando o Sci-Hub para burlar os bloqueios de revistas científicas

Junho 27, 2018 - 11:52
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No mundo contemporâneo, as tecnologias avançam mais rápido do que muitos de nós conseguem acompanhar. O que hoje é cotidiano para muitas pessoas, em termos de tecnologia, há poucos anos era completamente inacessível à maioria. O celular é um bom exemplo: lançado pela primeira vez em 1984, o primeiro celular não tinha mais funções do que fazer e receber chamadas, e custava US$ 3.995,00 (o que equivaleria, se fizermos a conversão com o valor referente a 26/06/2018, a R$ 15.099,40). Hoje, 34 anos depois, fazer ligações é o mínimo que o celular pode fazer (além de ser mais compacto). Outro exemplo é o computador: seu primeiro exemplar, o ENIAC, pesava 30 toneladas e ocupava uma área de 180 m². Começou a ser construído em 1943, mas só foi ligado em 1947. 71 anos depois, até os computadores com CPU separada do monitor são ultrapassados. Temos notebooks, netbooks, tablets, smartphones, etc. Com esse avanço tecnológico todo, muita coisa mudou no dia a dia das pessoas, sobretudo com o avanço do capitalismo globalizado. Não chegamos às previsões para os anos 2000 feitas por filmes de ficção científica da década de 1980, mas já podemos perceber um abismo tecnológico bastante acentuado entre as crianças e os idosos, por exemplo. Claro que nem as crianças, tampouco os idosos podem ser enquadrados em um único grupo, porém as crianças já vêm demostrando uma facilidade com as tecnologias digitais muitas vezes de forma mais acentuada que os adultos.

Dentre as tecnologias desenvolvidas nas últimas décadas, talvez a criação da World Wide Web (WWW), ou seja, a internet, seja uma das mais significativas. A facilidade de acesso a conteúdos diversos permitiu com que chegássemos a uma nova era: a Era da Informação. Podemos acessar quase que instantaneamente informações sobre o que acontece do outro lado do planeta; ou até textos antigos que anteriormente só teríamos acesso se viajássemos até aquele lugar ou de alguma forma conseguíssemos que esses textos nos fossem enviados. Hoje, com uma simples busca no celular, conseguir baixá-los. Claro que muita informação ainda é de difícil acesso e muita gente não possui celular ou internet para fazer essas pesquisas. Mas quanto às pessoas privilegiadas com um celular e acessoa internet de banda larga, elas possuem mais conhecimento do que possuiríam sem essas facilidades? Aqui nos deparamos em uma questão de conceitos: informação e conhecimento não são sinônimos! Em primeiro lugar, é possível adquirir muita informação sobre um tema e não possuir grande conhecimento sobre ele. Conhecimento é construído a partir de uma relação de trocas entre os sujeitos e aquelas informações, daí a crítica de Paulo Freire ao que ele chama de Educação Bancária[1], onde os conhecimentos dos educadores são depositados nos educandos. Em suas próprias palavras, "ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo" (p. 95).

Por outro lado, apesar de a internet permitir uma facilidade de trocas de informação, a qualidade dessas informações é cada vez mais questionada. O termo fake news[2] vem aparecendo cotidianamente, como resultado de uma política digital de se espalhar notícias sem atentar pela veracidade ou até propositalmente inventando mentiras para que o público acredite em uma informação falsa. Um caso recente no cenário brasileiro foi a descoberta de que grupos mal intencionados compostos por gente mal caráter, como o MBL, utilizam do facebook e de aplicativos para divulgar fake news em massa[3], [4], [5]. Sendo assim, como confiar nas informações que adquirimos na internet?

Uma resposta básica a essa pergunta é: cheque as fontes. Antes de ler qualquer notícia, veja de onde ela vem. As inúmeras notícias compartilhadas em redes sociais como whatsapp, instagram ou facebook muitas vezes não possuem sequer uma referência de onde foram encontradas. Outras tantas vezes, fotos são editadas, como foi o caso do menino recentemente assassinado na Maré pela polícia, quando foi divulgada uma foto falsa na internet com o suposto menino segurando uma arma, para justificar seu assassinato. Precisamos nos preocupar em não acreditarmos em qualquer coisa na internet (ou na boca das pessoas).

Nesse texto, não vamos nos aprofundar na confiança virtual como um todo, mas sim na questão específica de pesquisas científicas. Dizer simplesmente que "pesquisas" ou "cientistas" afirmam algo não pode ser simplesmente aceito como verdade, principalmente se não houver qualquer referência a essa pesquisa ou a esses cientistas. Ao lermos uma notícia que usa esses termos e não traz referência, a caminho mais seguro é não confiar nessa notícia. Um segundo passo é aproveitar as facilidades da internet para pesquisar outras notícias do mesmo tema e, possivelmente, descobrir afinal qual é essa pesquisa ou esses cientistas. Ainda assim, essa pesquisa pode ter sido mal interpretada, ter suas informações deturpadas ou até ter sido divulgada pela notícia apenas uma parte da pesquisa. O melhor caminho, portanto, é buscar a pesquisa original. Aí nos deparamos em dois grandes problemas: 1) grande parte das pesquisas é publicada em outras línguas (principalmente em inglês), e 2) mesmo que saibamos ler inglês ou a língua na qual a pesquisa foi publicada, o acesso aos artigos científicos costuma ser bastante caro. Infelizmente nós, do PAC, não temos como resolver os problemas relacionados ao fato de muitas publicações não serem em português. Por outro lado, temos um início de solução para o custo do acesso aos artigos científicos: o Sci-Hub.

Em termos gerais, as publicações em revistas científicas internacionais são bastante custosas. Os pesquisadores e pesquisadoras precisam pagar para a revista uma taxa para que os editores da revista, após avaliarem o artigo, publiquem-no. Ou seja, a revista recebe dinheiro para publicar um artigo que só vai ser acessado por quem pagar para conseguir lê-lo. O que o pesquisador ou pesquisadora ganha com isso? Nada. A não ser que seja um servidor de alguma instituição e ganhe alguma bolsa de produtividade ou ganhe pontos para progressão na carreira. Para os demais profissionais que se esforçam para publicar artigos mesmo não tendo um intervalo em sua carga horária separada para a pesquisa, eles não só não ganham nada, como também pagam para que seu trabalho possa ser publicado. Quanto aos leitores, se não estiverem acessando o artigo de uma rede que possua assinatura da revista em questão, terão que pagar pelo conhecimento. O capitalismo engole a ciência também. Existem alguns periódicos de acesso aberto e uma tendência mundial de crescimento de iniciativas nesse sentido. No entanto, essa tendência foi apropriada pelas grandes empresas de publicação. Algumas delas, como os grupos Springer e Elsevier passaram a onerar os autores em vez dos leitores por seus lucros. Os altos custos para a comunicação científica se mantiveram, o que se torna mais grave em países periféricos onde não há orçamento elevado nem políticas para suprir essa demanda. Além disso, surgiram as chamados editoras predatórias, onde não há avaliação por pares e o pagamento basta para que o artigo seja publicado[6]. Os debates sobre ciência aberta são ricos e podem ficar para próximos textos do PAC. De todo modo, os artigos fechados continuaram sendo atores importantes na ciência, seja pelas limitações apresentadas, seja porque boa parte dos periódicos com maior fator de impacto do mundo seguem fechados.

Voltando ao caminho de confiança virtual ao qual nos referíamos, de que adianta descobrirmos a pesquisa original, se não conseguimos acessá-la? A ciência, que deveria promover o conhecimento para todos e todas, continua uma "royal academy"[7], onde só as pessoas que fazem parte do "meio acadêmico" têm acesso à maioria das revistas científicas. Percebendo isso, Alexandra Elbakyan, graduada em ciência da computação nascida em 1988 no Cazaquistão, começou a desenvolver o Sci-Hub, que veio ao ar em 2011. É um site onde podemos digitar um link de uma publicação paga, e ele tenta abrir a publicação para o leitor. Em uma linguagem simples, o que o site faz basicamente é passar o link que digitamos em diversas redes de universidades até achar uma que tenha acesso àquela publicação; quando essa rede é encontrada, o usuário adquire acesso gratuito àquela publicação. Uma vez acessado, o artigo é salvo na base de dados do site. Alexandra explica que antes mesmo da criação do Sci-Hub, ela já teve que piratear[8] publicações pagas para que continuasse suas pesquisas. Em suas próprias palavras, "pagar 32 dólares é simplesmente insano quando você precisa ler dezenas de centenas de artigos para fazer a pesquisa. Eu obtive esses artigos pirateando-os" (original aqui em inglês). Ela se refere aos paywalls Elsevier, uma grande rede de publicação de artigos científicos que cobra 32 dólares por artigo para quem não tem assinatura, prática essa que a militante chama de ilegal[9].

A popularidade e cobertura do Sci-Hub são tamanhas que as empresas Elsevier e American Chemistry Society o processaram na corte americana. A decisão dos processos foi contra o Sci-Hub. No entanto, Elbakyan afirmou que não vai pagar as multas. Ela afinal, gerencia o site da Rússia, fora da jurisdição estadunidense. As tentativas de derrubada do Sci-Hub foram várias, e já foram diversos os domínios[10] que o site usou para continuar existindo. Hoje, ainda está no ar o https://sci-hub.tw/. Ainda que seja derrubado desse domínio, outros surgirão, então mesmo se não conseguirem entrar com o .tw, usem um site de busca[11] para achar o novo domínio. Além disso, existem sites irmãos com objetivos semelhantes, como o LibGen, que também guarda livros em sua base de dados.

Um estudo publicado na seção de notícias do periódico estadunidense Science indica que o Sci-Hub é utilizado por cientistas e estudantes do mundo todo, em países centrais ou periféricos[12]. O estudo foi feito a partir dos metadados de seis meses de funcionamento do Sci-Hub em parceiria com Alexandra Elbakyan. Embora seja mundialmente utilizado, os efeitos da ausência do site seriam mais sentidos em países onde as políticas nacionais e institucionais não permitem o acesso aos caríssimos artigos fechados, ou seja, países do sul global. O estudo citado indica inclusive que os usos do Sci-Hub nos EUA estão mais ligados à comodidade que à impossibilidade de acesso por meios legais. De todo modo, o Sci-Hub tem efeitos transformadores, seja expondo e pressionando à perversa indústria de editoras científicas, seja permitindo que milhares de pesquisadores e estudantes dos países periféricos acessem os artigos para fazer ciência emancipatória fora dos grandes centros.

Viva a ciência, desde que seja socializada! Ciência para todos e todas!

 

[1] FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. 253 p. 56 a edição.
[2] Pretendemos futuramente escrever um texto voltado para esse tema.
[3] http://www.valor.com.br/politica/5406653/facebook-remove-pagina-ligada-a...
[4] https://www.revistaforum.com.br/mbl-frauda-facebook-pra-espalhar-fake-ne...
[5] https://br.sputniknews.com/sputnik_explica/2018052411293911-mbl-facebook...
[6] CAMARGO JR, Kenneth R. de. Ao vencedor, as batatas?. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 9-12, Mar. 2015. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312015000.... Accesso em 26 de Junho de 2018.
[7] "Academia real", uma referência à Academia Real Inglesa, onde a ciência só era desenvolvida por e divulgada para um grupo muito seleto de pessoas.
[8] https://arstechnica.com/tech-policy/2016/04/a-spiritual-successor-to-aar...)
[9] https://torrentfreak.com/sci-hub-tears-down-academias-illegal-copyright-...
[10] Chamamos de domínio a parte final do site, como .com, .mus, .tv, .org, etc.
[11] Para evitar a gigante Google, aconselhamos o Ducduckgo, que possui uma melhor política de privacidade dos dados do usuário.
[12] http://www.sciencemag.org/news/2016/04/whos-downloading-pirated-papers-e...
 
Jorge Vitral e Lin Franco são fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

 

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