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O Brasil está cada vez mais perto da doença usamericana

Novembro 23, 2018 - 06:00
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Texto publicado originalmente no dia 12/11/2018 por Antony Devalle no grupo de Facebook do grupo Inimigos do Rei

 

A vitória eleitoral do Bolsonaro pra presidente do Brasil tem sido comemorada por uma parte dos seus seguidores com demonstrações de violência explícita. Vou enumerar alguns exemplos: 1) um jovem publicou em redes sociais uma foto vestindo uma camiseta com uma imagem do Bolsonaro, com uma arma apontando pra frente e com a legenda "Tá com medo, petista safada? É a nova era!" (https://www.revistaforum.com.br/apoiador-de-bolsonaro-pos…/…); 2) um estudante de direito divulgou um vídeo no qual, também apontando uma arma, diz, animado e nervoso, que está "indo votar ao som de Zezé, armado com faca, pistola, o diabo, louco para ver um vadio, vagabundo com camiseta vermelha e já matar logo. Tá vendo essa negraiada? Vai morrer! Vai morrer! É capitão, caralho” (https://g1.globo.com/…/aluno-suspenso-do-mackenzie-que-amea…); 3) um grupo de homens brancos apertando muito o gatilho num estande de tiros aos gritos de “É Bolsonaro ou não é? É" (https://www.revistaforum.com.br/video-atiradores-efetuam-r…/); e 4) alguns alunos de uma faculdade de economia e administração fizeram circular uma foto deles numa sala de aula armados, vestidos de militar, de apoiador do Trump e de Kim Jong-il, acompanhados de uma bandeira com uma cobra estampada e dos dizeres "Está com medo, petista safada?" e "A nova era está chegando" (https://www.revistaforum.com.br/estudantes-da-fea-usp-entr…/). Todas cenas de quem quer intimidar muito, com ameaças graves e muito diretas.

O jovem do primeiro exemplo, o estudante de direito do segundo exemplo e um estudante de administração do quarto exemplo ficaram com medo depois que viram parte das respectivas repercussões (o jovem, que defende o que a direita chama de família tradicional, foi flagrado num aplicativo de encontros homossexuais; o estudante de direito, além de demitido do estágio, foi repudiado por manifestações na faculdade, está suspenso da instituição, que avalia o caso, e foi indiciado em processos pelo que fez; e o estudante de administração viu a faculdade abrir uma sindicância pra apurar o ocorrido). Por causa do medo (provavelmente, só por isso), tentaram se retratar, mas, nos próprios pedidos de "desculpas" (o estudante de administração disse que o que fez era uma zoação - https://g1.globo.com/…/aluno-da-fea-usp-que-postou-foto-com…), expressaram, na prática, que pensam e sentem exatamente como nos materiais em que fizeram as graves ameaças.

Até onde eu saiba, o grupo de homens brancos do clube de tiro não se desculpou nem foi intimado, o que é grave.

O fio condutor das violentas ameaças mostra que os alvos preferenciais são nítidos no pinochetismo made in Brazil dos Mercados Unidos que é o bolsonarismo e, de modo mais amplo, na onda de direita capitã-do-mato do grande capital especialmente orgulhosa de si: mulheres, negros, pessoas de esquerda... Fica nítido também que, quanto mais superposição houver dessas características, - por exemplo, se for uma mulher negra de esquerda concretamente - o risco é maior. Se o fascismo difuso, entendido como essa violência em parte irracional, vinda de pulsões do (")insconsciente(") mal canalizadas, e em parte dirigida, com plena consciência dos seus objetivos imediatos e principais, já perturba a sociedade brasileira há muito tempo (inclusive, nos governos encabeçados pelo PT), com o Temer e agora com o Bolsonaro eleito os pouquíssimos freios institucionais a esse tipo de comportamento individual e institucional estão sendo rapidamente eliminados, embora haja algum grau de resistência. A "nova era" que essa onda almeja é a da licença pra matar. Alguns se imaginam como o 007, mas a maioria prefere se sentir um Rambo (na versão hollywoodiana, na do policial brasileiro que torturava e matava na Favela Naval, em São Paulo, na de um integrante do Comando de Caça aos Comunistas da ditadura de 1964, ou numa outra versão qualquer).

O ambiente bolsonarista estimula (muito) essa onda. E isso faz muita diferença.

O Bolsonaro se empenha pra que o que ele chama de "cidadão de bem" (nome do jornal da Ku Klux Klan, organização racista dos Estados Unidos que matou muitos negros e que tem um ex-líder que disse que o Bolsonaro parece com eles - https://www.revistaforum.com.br/ex-lider-da-ku-klux-klan-e…/) tenha posse e porte de arma com bastante facilidade. Com o autoritarismo social brasileiro, cada vez se despindo mais do disfarce do homem cordial, o faroeste caboclo não vai ser uma genial canção do Renato Russo, mas um bangue-bangue que vai entreter (e destruir ainda mais) a sociedade brasileira. Como no texto O espetáculo é permanente, do escritor francês Roland Topor, muitos que estão (achando que estão) assistindo um filme vão se perceber, mais cedo ou mais tarde, presos na tela do filme que está em todo lugar. Enquanto isso, a agenda dos grandes capitalistas, com seu porrete ultra-liberal, avança cada vez mais no domínio de todas as esferas da vida, e esmaga a vida, inclusive, dos que se acham Rambos.

Nos Estados Unidos, onde o "cidadão de bem" pode ter muito facilmente armas, é muito comum alguém, na maioria das vezes visto até a véspera como um "cidadão de bem", ir num dia armado num lugar cheio de gente e atirar pra matar o máximo possível de pessoas ali. O filme Tiros em Columbine (https://www.youtube.com/watch?v=X5QwnQUqZeA&has_verified=1), do estadunidense Michael Moore, mostra bem isso. Até um tempo atrás, o Brasil, apesar de palco de muitas chacinas, principalmente contra pobres e negros, em periferias, e outras graves violências desse tipo, não tinha no cardápio da sua violência esse tipo de massacre, tão tipicamente usamericano quanto o hambúguer na companhia do sorridente Ronald McDonald. Em 1999, um estudante de medicina entrou num cinema num shopping em São Paulo e disparou contra o público https://fotografia.folha.uol.com.br/…/47548-atirador-do-sho…), matando algumas pessoas no local, aproximando o Brasil dos Estados Unidos. Em 2011, um ex-estudante de uma escola em Realengo, no Rio de Janeiro, voltou na escola, armado, e matou diversas pessoas (http://g1.globo.com/…/atirador-entra-em-escola-em-realengo-…). Em 2017, foi a vez de um estudante fazer o mesmo numa escola em Goiânia (https://exame.abril.com.br/…/columbine-e-realengo-inspirou…/). O sonho brasileiro é viver o sonho americano?

O sonho já é pesadelo.

Além da onda de violência simbólica e física mais diretamente visível, outra onda afoga uma grande parcela do povo brasileiro: o ultra-liberalismo econômico. Os impulsionadores de cada uma dessas ondas têm suas próprias agendas (ainda que alguns impulsionadores queiram mesmo as duas agendas, não apenas circunstancialmente, mas também como projeto de fundo) e é possível que, em algum momento, haja uma polêmica prática entre os dois grandes setores que se esfregam juntos as mãos, mas hoje, realmente, grande parte juntou as agendas. A teologia da prosperidade, que foi muito utilizada no combate à teologia da libertação, e o discurso "bandido bom é bandido morto" se associaram ao ultra-liberalismo, do qual em parte são crias, e utilizam, entre outras ferramentas, um discurso anti-comunista cujo nível é dizer que o nazismo é de esquerda e que o fantasma do comunismo (onde está que não o vejo?) perturba o sono de todas as donzelas e opera todos os males do país (e do mundo). Na prática, como não há nenhum projeto comunista concreto ou com qualquer capacidade mínima de se tornar concreto atualmente, pra além de reduzidos espaços, esse discurso tem como alvo a utilização do Estado como pelo menos um mínimo de busca de alguma preocupação com a desigualdade social. Não querem propriamente o Estado mínimo, como pregam, mas o Estado máximo a favor dos ricos e mínimo pra ajudar os pobres. Dito de outra forma, querem o Estado máximo contra os pobres. Por isso, destróem tudo o que no Estado possa significar, em algum grau, um instrumento pra diminuir a desigualdade social. Por isso, privatizam tudo o que pode, ainda que com contradições, ser um instrumento desse tipo. Por isso, repetem, como um disco arranhado que disfarça bem estar arranhado, que a liberdade só é possível com o liberalismo econômico, que só é possível ser feliz com o ultra-liberalismo econômico. Nesse discurso, Deus paga dízimo pro Mercado.

Nos Estados Unidos, esse é um pensamento dominante há muito tempo. O Trump, por exemplo, rotula o Obama como comunista só porque ele, que é muito capitalista, aprovou um mínimo de saúde "pública" no país, com a Lei de Atendimento de Saúde a Preço Acessível, mais conhecida como Obamacare (https://www.cartamaior.com.br/… e https://oglobo.globo.com/…/cinco-pontos-para-entender-que-o…). O keynesianismo que, aplicado por Franfklin Delano Roosevelt, por meio do New Deal, quando foi presidente dos EUA nos anos 1930, salvou o capitalismo estadunidense (e mundial) da gigantesca crise liberal de 1929. Mesmo assim, os arautos do ultra-liberalismo, que não têm vergonha de recorrer ao Estado mas escondem isso, pregam que o Estado só atrapalha a economia e que o liberalismo é a natureza da economia, e grande parte dos estadunidenses acredita. Mesmo diante do quadro de aumento expressivo da pobreza no (ainda) mais poderoso país do mundo (https://g1.globo.com/…/pobreza-se-aprofunda-nos-eua-sob-gov…). O Brasil está cada vez mais uma caricatura dos Estados Unidos também nisso.

A Petrobras, que já vem sendo privatizada há muito tempo, com ênfase nos últimos anos, é a jóia da coroa do patrimônio estatal e potencialmente público brasileiro. Tanto em termos materiais quanto em termos simbólicos. O que sobra de estatal na Petrobras (a retirada do acento foi um passo do longo processo de privatização, agora muito acelerado) e, sobretudo, os resquícios do que nela é potencialmente público, estão muito ameaçados. Pelo ultra-liberalismo e por sua tropa de choque. Dentro e fora da empresa, já foram conquistadas muitas mentes e muitos corações pra esse projeto. O discurso de que a técnica é neutra e de que o mérito (quem o define?) é naturalmente recompensado, o discurso de que existe uma gestão puramente técnica (e, portanto, certa) e sem política e que isso é trazido pela lógica privada é a tropa de choque em forma de palavras e, sobretudo, de imagens. Nas entrelinhas (muitas vezes, até nas linhas mesmo), quem profere esse discurso (e quem o segue) mostra o porrete a quem ainda resiste, a quem ainda se mostra crítico na prática, e diz que o caveirão das finanças vai atropelar.

Pra não sermos atropelados, precisamos de solidariedade entre os trabalhadores. Isso passa pela organização e pela luta coletiva nos locais de trabalho, moradia, estudo, lazer... Uma tarefa fundamental nesse esforço é o combate à mercantilização de tudo. Mão à obra.

 
Antony Devalle é trabalhador da Petrobrás e integrante do grupo autônomo de trabalhadores petroleiros Inimigos do Rei.

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