Corte e privatização: o que será feito da ciência brasileira?
Hoje 15 de maio é dia de mobilização unificada em defesa da educação.
Por Lin Franco
No final de abril, o ministro da educação, Abraham Weintraub, anunciou que cortaria 30% do orçamento de três universidades, UFF, UnB e UFBA. O motivo era ideológico: perseguição política contra a balbúrdia dessas universidades. Um adjetivo bem ousado para esse singularmente organizado governo. Não satisfeito e impossibilitado pela inconstitucionalidade de suas propostas, o Ministério da Educação anunciou cortes bilionários no orçamento de toda a pasta, da educação infantil até a pós-graduação. O corte médio no orçamento das universidades federais foi de 30%, sendo ainda maior em alguns locais. Medida tão desmesurada que pode comprometer até o fornecimento de água e eletricidade.
Está evidente que o plano dos liberais é se aproveitar do anti-intelectualismo e obscurantismo das alas olavistas para aumentar o lucro das grandes empresas da educação. Enfraquecer o ensino público é fortalecer a lógica do mercado na educação. Após anúncio dos cortes, as ações dos tubarões da educação, Kroton Educacional, Estácio Participações e Ser Educacional, dispararam. A irmã de Paulo Guedes, Elizabeth Guedes, vice-presidente da Associação Nacional de Universidades Privadas (Anup) agradece.
Lado a lado da destruição da educação pública, vem a destruição da pesquisa científica brasileira. A Capes, maior fornecedora de bolsas de pesquisa, da iniciação científica ao pós-doutorado, não escapou dos cortes. Mas o que a sanha privatista proporia para substituir o vácuo do orçamento público de pesquisa?
Ao contrário do que o presidente afirma, a esmagadora maioria da pesquisa brasileira é realizada em instituições públicas e financiada com dinheiro público. Nem as universidades privadas, com pouquíssimas exceções, nem as empresas privadas se mostram minimamente empenhadas em gerar conhecimento nacional, como já discutimos em outros textos.
Mas uma iniciativa, que coincide temporalmente com o início do declínio do orçamento da ciência e tecnologia, chama atenção pelo discurso idealista e pelos designs calculadamente assépticos. Gestado em 2014 e inaugurado em março de 2017, o Instituto Serrapilheira é uma instituição privada sem fins lucrativos de financiamento à pesquisa. Em seu site diz que seu objetivo é financiar pesquisas de excelência e contribuir para a construção de uma cultura de ciência no país (link: https://serrapilheira.org/quem-somos/). Desde sua fundação, o Instituto deu pequenos financiamentos a alguns pesquisadores jovens que atuam no Brasil e também abriu editais de fomento à divulgação científica e à reprodutibilidade dos resultados de pesquisa (temas a serem melhor trabalhados em textos futuros).
Ok, mas qual o problema com um instituto que auxilia no financiamento da pesquisa no Brasil e parece ter como interesse legítimo o desenvolvimento da ciência nacional?
Bom, vamos primeiro seguir o dinheiro. O Instituto se baseia em um fundo patrimonial de 350 milhões de reais doado pelo casal de bilionários Branca Vianna Moreira Salles e João Moreira Salles. A família Moreira Salles é a mais rica do país. São pertencentes àquele famoso grupo de meia dúzia de pessoas que têm mais riqueza que metade da população brasileira somada, sabe? E essa riqueza vem da exploração dos minérios brasileiros, mas também da exploração da população. A família, fundadora do Unibanco, é hoje a maior acionista do Itaú. Banco este que bateu recordes de lucro sucessivos em 2017 e 2018, nos valores respectivos, 24 e 25 bilhões de reais.
Apesar dos níveis crescentes de desemprego e da dita crise econômica, o banco nunca lucrou tanto. Tem gente ganhando com a dívida pública, com o contingenciamento do orçamento público e com o endividamento generalizado da população empobrecida. A crise é para quem afinal? É curioso mas não coincidência que quem surja na comunidade científica como uma solução para os orçamentos minguantes, seja um grupo ligado ao setor financeiro que mais lucrou no mesmo período. Os Moreira Salles/Itaú Unibanco, por sinal, também estão envolvidos em iniciativas semelhantes no setor da cultura, com o Instituto Moreira Salles, e da educação, com o Todos Pela Educação.
Para quebrar a falácia da filantropia, é importante comparar as ordens de grandeza dos orçamentos que estamos falando. O total de dinheiro investido pelo Serrapilheira em pesquisas científicas foi de aproximadamente 6,35 milhões em 2017. Esse valor equivale a 0,026% do lucro do Itaú no mesmo ano. Mesmo o fundo patrimonial de 350 milhões, aparentemente um valor impressionante, não é nem 3% do patrimônio total estimado de 13 bilhões de reais de João Moreira Salles.
Mas você ainda pode estar se perguntando: ‘ah, mas qual o problema de o Instituto ser de uma família de bilionários? Se eles estão financiando a ciência brasileira, ótimo’. E eu digo: bilionário não dá ponto sem nó. Com o Serrapilheira, a família passa a ter gerência sobre as agendas de pesquisa nacionais, que são, obviamente, estratégicas. Por trás de um certo discurso de neutralidade, de dizer que o apoio é à excelência na pesquisa, está também uma ideologia. E o Serrapilheira sabe disso. Não por acaso eles delimitaram áreas prioritárias de financiamento - ciências naturais, matemática e ciências da computação – que não incluem artes, humanidades e filosofia.
E vou além ao dizer que os processos avaliativos e de seleção também não são neutros e dissociados de quaisquer relações de poder e interesses (assim como não o são as avaliações das instituições públicas, que fique claro). Em seus editais, o Serrapilheira diz conceder seus financiamentos por meio de editais competitivos a projetos “criativos, inovadores e audaciosos”. Destaco que não há critérios de seleção quanto à relevância social, à importância local e transformadora de realidades. A ‘excelência’, no caso, parece depender da uma aprovação dos projetos por ‘painéis majoritariamente constituídos por cientistas em atividade em instituições internacionais’. Excelente, aparentemente, seria a pesquisa feita fora do Brasil e a meta seria a completa inserção nas redes globais de pesquisa. Junto, claro, de suas agendas, prioridades, lógicas e procedimentos[1].
Caminho para o final deste texto fazendo um aparte. Eu não acredito que as pesquisas já financiadas pelo Serrapilheira desdenhem de questões sociais e da relevância local para a realidade brasileira. Uma breve passada de olho no nome dos projetos financiados indica o contrário. Também não acredito que dada a proporção do Serrapilheira ele já tenha algum impacto para além do simbólico de reduzir a soberania da pesquisa nacional, afinal o orçamento público continua sendo ordens de grandeza maior que o valor despendido pelo instituto privado.
A crítica principal deste texto é sobre o financiamento privado enquanto modelo de fomento à pesquisa científica em substituição às lógicas do financiamento público. Uma estrutura privada, diretamente ligada ao setor financeiro, que parece defender padrões internacionais como referência está em forte oposição à ciência cidadã, popular, descolonizada, localmente situada que defendemos no PAC desde sua fundação 1 ano atrás. Apesar de as lógicas de Capes, CNPq e outras financiadoras públicas também focarem em critérios de competitividade, produtividade e inserção internacional, as contradições das estruturas públicas permitem debates e reestruturações em diálogo com a comunidade científica. Reconhecendo todas as falhas e limitações, também destaco ações públicas pontuais de controle social (como a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde) e de foco na capacidade transformadora das pesquisas (como as bolsas de doutorado e pós-doutorado do programa Brasil sem Miséria). Colocar na mão dos bilionários os rumos e prioridades da ciência brasileira vai afastá-la ainda mais de qualquer possibilidade de emancipação e democratização.
Nota:
↑[1] Para um debate mais aprofundado na questão da internacionalização, avaliação e produtivismo recomendo a leitura do texto: BAUMGARTEN, M. Avaliação e gestão de ciência e tecnologia: Estado e coletividade científica. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 70, p. 33–56, 2004. Acesso pelo link: https://journals.openedition.org/rccs/1046
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