Democracia, educação e escola – desafios para driblar o senso comum e uma reflexão para a transformação concreta
Há mais de um século a educação é construída de forma institucional pelo estado brasileiro a partir da lógica republicana e nas últimas décadas tem ocorrido um esforço para a universalização do ensino público no país.
A duras penas alguns direitos foram conquistados pela classe trabalhadora no campo da educação desde as primeiras décadas do século XX, incluindo nesse caso corpo docente, funcionários em geral e os discentes, que muitas vezes começam a trabalhar ao mesmo tempo em que estudam em diversas regiões do país e ao longo de todo esse período de maior acesso da população ao ensino público estatal.
Sobre o cotidiano escolar sempre digo que a realidade é que ainda temos um ambiente difícil e complexo até os dias atuais, onde temos um formato estrutural das escolas públicas extremamente verticalizado, onde corpo diretor e docentes estão acima de estudantes em quase todas as posições decisivas que temos em diversas circunstâncias.
Infelizmente o corpo discente no espaço escolar é visto como receptor das decisões tiradas para o convívio no ambiente das escolas, ou seja, os estudantes quase nunca são colocados como protagonistas na construção do cotidiano, principalmente quando falamos de ensino básico.
Dito isso, precisamos trazer um debate que acreditamos ser muitas vezes esquecido quando falamos de escola e ensino público. Uma discussão que perpasse o diálogo entre educação e democracia, para além dos marcos institucionais, que vá também no sentido de uma educação que seja construída de forma coletiva, participativa em diversas etapas e pelo povo.
São muito pobres as discussões que envolvem educação no senso comum e até em setores da academia, restringindo a educação apenas ao espaço da sala de aula ou o extremo oposto: a educação é a família que proporciona, e a escola é uma espécie de local de reprodução de diferentes disciplinas para a cabeça de estudantes, para dali saírem com diploma para cursar o ensino superior e/ou trabalhar, e ponto final. Fora que em alguns momentos o espaço escolar é tratado como um depósito de crianças e adolescentes.
Entendo educação como uma troca de conhecimento, saberes, afetos e culturas que estão muito além da grade curricular escolar ou do que se aprende com nossos pais, familiares e responsáveis quando jovens. E se formos pensar numa educação que busque transformar a sociedade e romper paradigmas, esse papo vai mais longe ainda.
Quando pensamos numa educação que questione o sistema e que não se conforme com o espaço escolar, podemos resgatar a prática dos anarquistas e a pedagogia libertária, que foram os primeiros a exaltar a coeducação sexual (meninos e meninas estudarem no mesmo ambiente) como princípio político e educacional, e incentivaram o rompimento dessa divisão da educação manual e intelectual, considerando que todo o esforço intelectual pode e deve ser colocado manualmente, e as questões manuais exigem um intelecto sempre trabalhando. Com isso, as questões referentes aos aspectos físicos e mentais não se separam na prática educacional.
Autores e militantes como Proudhon e Bakunin ainda no século XIX chamavam de ensino integral, pois, para que uma nova sociedade surja, um outro ser humano deve ser formado desde a escola ou espaços educacionais. A partir daí outra lógica social se constrói coletivamente, outras instituições são fundadas, outras formas de relações se organizam, dentre outras questões que derivam dessas práticas cotidianas.
Outros militantes anarquistas no século XIX se destacaram no campo da educação, como Louise Michel, uma das protagonistas da Comuna de Paris, que, além de professora, era escritora, poetisa e realizou um trabalho de educação com populações exploradas pelo império francês (na Nova Caledônia) e nesse caso aprendeu com os nativos, e lutou contra a própria França pela libertação junto aos nativos da Oceania.
Já no século XX outros expoentes do movimento libertário ligados à educação aplicaram essas ideias da coeducação sexual e ensino integral em experiências como Ferrer i Guardia, na Escola Moderna de Barcelona, Sébastien Faure, na Colmeia na França, Pelloutier, que foi um pedagogo envolvido com sindicalismo, um dos idealizadores da ideia de Bolsas de Trabalho, ou aqui no Brasil, com destaque para a militante, feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura.
Os anarquistas foram inovadores em muitos aspectos da luta no campo da educação, que aqui não vamos aprofundar mas que é sempre importante reforçar e mostrar alguns exemplos, de que é e sempre foi possível uma educação democrática, que questione não só o capital mas a construção vertical do ensino formal do estado.
Se formos pensar na história da educação popular no país temos como destaque a figura de Paulo Freire e todos que o ajudaram a construir o Movimento de Educação de Base nos anos 1960, que foi perseguido com o golpe e chegada dos militares no poder. Dali em diante Freire se aliou a movimentos sociais ligados à educação na América Latina e África.
A educação quilombola, indígena e camponesa construída a partir do local onde as pessoas trocam saberes e conhecimentos ancestrais, ligados à terra e que são verdadeiras alternativas ao modelo educacional formal vigente no capitalismo, também se incluem nesse diálogo entre uma educação para além da lógica escolar e estatal muitas das vezes, e de certa forma têm muitos pontos de interseção com a educação libertária e popular num geral.
É nesse momento que trago de novo o debate envolvendo democracia, educação e escola. Democracia enquanto significado original é relativa ao “governo do povo” (guardadas as devidas proporções de sua prática política na Grécia Antiga, que foi onde surgiu o termo). Portanto, democracia e educação precisam ser pensadas e praticadas no sentido mais amplo possível, não só com relação ao famigerado sufrágio universal de dois em dois anos ou na educação escolar extremamente hierarquizada e vertical em sua construção diária.
Os movimentos sociais de maneira geral, desde o movimento operário e seus espaços de discussões libertárias nas primeiras décadas do século XX, os movimentos de educação que Paulo Freire passou e influenciou com seu método freireano de educação popular, como das palavras geradoras, por exemplo; a educação quilombola, indígena e camponesa. Acredito que todas essas formas de troca educacional se incluem na lógica que acreditamos ser uma educação democrática de fato. Com participação de docentes, estudantes e apoiadores(as) no processo que sempre tende a ser coletivo.
Será que quando falamos de democracia e educação no senso comum ou até na militância em geral, estamos chegando a esse ponto de reflexão e prática no dia-dia? Lembrei de um diálogo ocorrido em 2016, quando a escola em que trabalhava na Baixada Fluminense foi ocupada (no ciclo em que mais de 60 escolas estaduais foram ocupadas no Rio de Janeiro) e uma das principais reivindicações dos estudantes era a exoneração da diretoria da escola devido a diversos problemas que essa tinha com o alunado em geral, principalmente relacionado ao autoritarismo que existia no cotidiano.
Foi quando teve uma assembleia puxada pela ocupação em que até professores que eram contra a ação direta estudantil foram chamados para dialogar. Daí um dos docentes contrários ao movimento indagou: “mas vocês estão na escola, expulsaram a direção e a diretora não está mais respondendo por ela. Isso por acaso é democrático?”
A minha resposta foi dizer que existem outras formas de democracia, que democracia é mais que um conceito, e é sim uma prática ampla demais, e a diretora na ocasião nem eleita tinha sido, pois era indicada pela Secretaria de Educação. Outros estudantes responderam também ao professor que estava ali insatisfeito com a situação e defendendo a direção. Se os estudantes que fazem as escolas respirarem e dão vida depois para aquele ambiente não se sentem representados e nem à vontade com o tratamento pessoal e de certa forma político que estavam tendo, estamos longe de qualquer ideal democrático nessa escola.
Vale dizer que pouco tempo depois as diretoras foram de fato exoneradas e algumas reivindicações como maior investimento na infraestrutura do colégio foram implementadas… Uma vitória retumbante dos estudantes!
Por fim, temos que levar a educação, a escola e a democracia de forma mais aprofundada no nosso cotidiano. Num momento da maior pandemia de nossas gerações, onde governantes eleitos pelo sufrágio universal (muitos de formas bastante suspeitas) querem a todo custo a volta às aulas nas escolas e onde muitos familiares não possuem renda (que é obrigação dos governos dar assistência às pessoas em situações de precariedade), fazendo com que a responsabilidade fique no colo de quem trabalha nas escolas, ou seja, reforçando a ideia da escola como um depósito de crianças e adolescentes.
Os representantes não só não cumprem suas obrigações de prestar assistência básica à população num momento crítico como esse, mas incentivam também o conflito entre os de baixo: pais e responsáveis contra professores e corpo de funcionários das escolas. Jogando o povo contra o povo, classe trabalhadora contra classe trabalhadora.
Estamos longe de um ambiente democrático na sociedade em geral há mais de 500 anos, e com relação ao ambiente das escolas públicas a educação também não está perto do ideal, por isso mais uma vez é necessário aprofundarmos essa tríade para não cairmos nas armadilhas simplistas: democracia, educação e escola são muito mais do que a gente assiste nos debates e encontros, seja na academia de forma presencial ou em formato de “lives” nesse período de isolamento social em tempos de pandemia.
Democracia, escola e educação sem participação de todas as pessoas envolvidas, interação e construção coletiva são apenas palavras bonitas com sentido e práticas vazias, que não se sustentam politicamente no cotidiano.
Guilherme Santana é professor do Pré Vestibular Machado de Assis no Morro da Providência, militante no campo da educação popular e libertária, é formado em Ciências Sociais pela UFRJ, mestre em educação pela UFRJ, doutorando em história comparada pela UFRJ, editor da Revista Estudos Libertários da UFRJ, é pesquisador do Observatório do Trabalho na América Latina da UFRJ (OTAL-UFRJ) e professor de sociologia da Rede Estadual de Educação do RJ.
Texto publicado inicialmente no site do PAC.
Comentar