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In Code We Trust (II) - A Tokenização

In Code We Trust (II) - A Tokenização

Agosto 01, 2018 - 22:02
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A primeira parte desse texto pode ser acessada aqui

Em linhas gerais, podemos definir a tokenização como um processo que visa transformar ou substituir um ativo real (mesmo que digital) em um número gerado por algorítmos. Nesse caso, não só objetos podem ser tokenizados, mas cadeias de produção, gostos, relações e até pessoas. A tokenização é uma radicalização da mercantilização de tudo, atribuindo signos (tokens) mercantis próprios ao que se mercantiliza. A tokenização de tudo está apontando para o fim da era da informação, do compartilhamento, da internet e entrada na era do valor, onde cada serviço terá sua moeda/token próprio e tudo funcionará na base de micro-pagamentos e recompensas.

Na realidade, não é dificil de imaginar esse movimento ofensivo de retomada do valor nos serviços digitais. Já podemos vê-lo em essência por fora da blockchain com a Netflix e o Spotify, por exemplo. Duas gigantes que conseguiram aproveitar bastante o vácuo oferecido pelos ataques sistemáticos à pirataria virtual e à tecnologia dos torrents[1]. Parece claro que ambas são respostas à potência disruptiva oferecida pela internet e as redes Peer-to-peer (P2P ou ponto-a-ponto) . Souberam se apropriar da potência do compartilhamento e, aliados ao grande capital, conseguiram oferecer alternativas baratas e inovadoras, mesmo que centralizadoras, subvertendo os muitos mecanismos utilizados pelos "piratas". O resultado disso, por exemplo, é que segundo levantamento no Google Trends, hoje a Netflix tem mais procura do que as alternativas piratas[2]. A tokenização é apenas uma radicalização desse processo, visando uma reapropriação desse espirito descentralizador dos mecanismos já utilizados pelos piratas.

No entanto, há uma diferença primordial entre os torrents e esse tokens "blockchainizados": os primeiros são arquivos, podem ser copiados e compartilhados, já os segundos, são escassos e únicos. Enquanto nos torrents é uma cópia a ser enviada, nos serviços que se baseiam na tecnologia blockchain e nas criptomoedas/criptotokens o que se envia é documento original, não sendo possível cópias, do contrário poderíamos ter "double-spendings". É, de fato, a criação da escassez na era da abundância digital.

 

CRIPTOMOEDAS / CRIPTOTOKENS

A tokenização da economia é um dos grandes pontos da tokenização. As empresas mais alinhadas com a tecnologia blockchains agora não mais fornecem suas ações nos mercados de capitais pelas IPO (Initial Public Offering), mas liberam seus próprios tokens para serem comprados nas ICOs (Initial Coin Offering). Ou seja, ao invés de você comprar uma ação, você agora compra tokens (ou moedas) que representarão em valor a confiança depositada no produto/serviço da empresa, que terá seu valor assegurado conforme a demanda pelos tokens/moedas. Acrescente à esse cálculo o fato de algumas empresas tornarem seus tokens monopolísticos, isso é, liberam apenas uma quantidade específica de tokens/moedas em uma ICO e colocam um prazo para serem adquiridas. Após esse prazo, tokens/moedas restantes são destruídos e os movimentos transacionais só serão efetuados com os que foram adquiridos, sem chances de criação de novos recursos. É através dessa escassez que surge a valorização desse ativo digital. Esse é o caso da Bunny Token, uma solução de pagamento baseado na blockchain da Ethereum, que objetiva ser o futuro dos pagamentos na indústria "adulta". Segundo a empresa responsável pelas Bunny Tokens, em seu whitepaper "BunnyToken: The Future of Payments in the Adult Industry"[3]:

"BunnyToken é um projeto inspirado na indústria de adultos que visa oferecer todos os negócios relacionados para tal indústria uma solução de pagamento segura e confiável, para garantir a segurança e minimizar as rejeições com base na natureza do negócio. Nossa visão é um futuro em que grande parte do mercado adulto utilize um token unificado; Bunny, por todas as suas transações. Os diferentes setores da indústria criarão um ecossistema intrincado com milhares de negócios interconectados, nos quais os tokens serão trocados, e seu valor será consistentemente em ascensão. Nosso objetivo é o BunnyToken para se tornar a principal criptomoeda que substituirá em grande parte as moedas fiduciárias na multibilionária (em dólar) indústria adulta ao longo de vários anos. BunnyToken servirá como uma solução a um problema proeminente, tornando-se um símbolo altamente usado e valioso para milhões de empresas e indivíduos."

Mas nem só da industria pornô vive a blockchain. O GST (Game Starts Token) é um projeto que visa oferecer uma solução para o e-sport e para os "ciberatletas". O funcionamento é o mesmo do BunnyToken: os tokens serão colocados à disposição para compra com um valor específico, e apenas uma certa quantidade de tokens será liberada. Caso todos os tokens não se esgotem nessa venda, os restantes serão destruídos e a circulação do capital será ditada pelos tokens adquiridos nessa primeira etapa. A GameStar oferece essa plataforma transacional que significa, de acordo com seu whitepaper "Game Star Token v.1.2.1"[4]:

"uma chance para que os ciberatletas obtenham investimentos para seu avanço profissional, participem de torneios de diferentes níveis, e criem seus próprios torneios; uma chance para as equipes desenvolverem seus próprios jogadores, encontrar novos jogadores para se juntar às fileiras da equipe, atrair anunciantes epatrocinadores; uma oportunidade para os investidores receberem receitas de seus investimentos em cyberesportes; uma oportunidade para os anunciantes selecionarem uma equipe, um jogador ou um evento apropriado para promover sua marca;"

Em ambos os casos, ganha quem sair na frente e começar a adquirir os tokens nesse exato momento. A especulação do sucesso que pode vir a ser essestokens é o único garantidor dos verdadeiros frutos posteriores.

 

'A ECONOMIA DO "COMPARTILHAMENTO"' ou 'A UBERIZAÇÃO'

E se os dois exemplos ainda são poucos e insuficientes para caracterizar todas as possibilidades oferecidas pela blockchain e resumir a tokenização, é válido recuperar uma outra designação que se apresenta como disrupção nas novas relações de trabalho e de gestão econômica: a uberização. Alguns mais otimistas insistem no termo "economia de compartilhamento" para designar serviços como o uber e a airbnb, onde as empresas não são donas dos carros (no caso do uber) e dos espaços (no caso da airbnb), mas sim da plataforma contratual onde tais serviços são contratados, porém, na crítica aos "atravessadores", os entusiastas da blockchain já pensam em soluções que visam eliminar os "ubers" e os "airbnbs" dos processos. "Imagine o Uber sem a Uber, onde toda a economia se dá diretamente entre os motoristas, que fornecem os serviços, e os consumidores, os passageiros que solicitarão a corrida, sem que haja um órgão intermediario nessa relação? Imagine uma plataforma como a AirBnB, sem a airbnb ficando com a maior parte desse bolo? Podemos falar que essas sim serão verdadeiras economias de compartilhamento, uma vez que as formas antigas, das intermediações, já se provaram monopolistas e nada "compartilhadas", não tão horizontais assim, como o nome tende a oferecer tal conotação para essa nova organização do trabalho"[5]. Tal frase, hoje bastante repetida nas mesas de discussões e ciclos de apresentações sobre a blockchain escondem as outras problemáticas que podem se desenvolver no processo. Se tomarmos como base as experiências já em prática, podemos imaginar a criação de tokens monopolísticos e a dependência da plataforma das mesmas. Quem tiver um bom capital inicial vai sair na frente, o que torna a ideia da "pré distribuição da riqueza" (em oposição à redistribuição da riqueza) uma grande falácia. Mas não nos prenderemos nas suposições. Algumas iniciativas já foram apresentadas e já fornecem bastante dos elementos do que virá em substituição à famosa "uberização".

A Chazyr se pretende uma "Uber sem a Uber". Idealizada por um motorista de Uber em contato com a tecnologia Blockchain, a plataforma pretende fornecer "liberdade para os motoristas e passageiros", sendo "dirigido pela comunidade", oferecendo "justiça para os motoristas" que irão "manter o que lucrar" tendo "menores taxas" pela utilização do serviço. Além disso:

"Nosso objetivo é distribuir valor mais justamente entre o motorista da empresa e o piloto. Nós da Chasyr acreditamos que as grandes organizações são movidas pelo propósito, não apenas pelo lucro. Nosso objetivo é aumentar o relacionamento com nossos motoristas, porque eles não são um algoritmo!"[6]

Teremos que esperar um pouco mais para entender como essa nova dinâmica afetará as relações de trabalho já reorganizadas pela uberização. Mas é certo dizer que, assim como a Netflix e o Spotify foram uma forma de readaptação das industrias de entretenimento nas novas dinâmicas virtuais, a blockchain com certeza é o novo paradigma a ser explorado por essas empresas. Não será uma surpresa se as próximas plataformas de "economia compartilhada" (agora tokenizadas) virem das próprias empresas que se colocam como os atravessadores de hoje. Imagine o uber sem o uber, mas toda a economia na plataforma sendo movida por "ubertokens"? Seria a "tokenização da uberização" a tokenização dos próprios atravessadores, agora codificados e redistribuidos na rede em forma de moedinhas?

 

PUBLICIDADE E PROPAGANDA

Nas análises de casos sobre o uso da blockchain, não poderíamos deixar de lado o setor da publicidade e propaganda, verdadeiros fomentadores de toda a lógica hoje estabelecida na monetização da internet. Enquanto a lógica atual se baseia em coleta das nossas informações para especificação cada vez mais profunda de propaganda direcionada, uma análise minuciosa de nossos gostos e a criação de um padrão de consumidor para melhor aproveitamento do direcionamento, a blockchain aparece como uma solução para grande parte dos problemas apresentados nesse processo, isso é, a coleta de informações pessoais e o retorno aquém do investimento depositado nesse modelo. O Basic Attention Token é uma solução que visa conectar diretamente os usuários, editores e anuciantes para negociarem diretamente os anuncios apresentados, tendo como base o micropagamento através de tokens da BAT. De acordo com o whitepaper "Basic Attention Token: Blockchain Based Digital Advertising"[7]:

"A publicidade digital está quebrada. O mercado de publicidade online, uma vez dominada por anunciantes, editores e usuários, tornou-se invadida por negociadores de anúncio “intermediários” , pela segmentação de público-alvo, pelo complicado monitoramento comportamental e o rastreamento pelo cruzamento de dispositivos, e o opaco compartilhamento entre partes através de plataformas de gerenciamento de dados. Os usuários enfrentam níveis sem precedentes de "malvertisements" e violações de privacidade. A publicidade para celular resulta em até 23 dólares por mês de cobranças de dados no plano de dados médio do usuário, carregamento lento de páginas e até 21% menos de vida útil da bateria. Em resposta, mais de 600 milhões de dispositivos móveis e desktops (globalmente) empregam softwares de bloqueio de anúncios e esse número está crescendo. Os editores tradicionais perderam aproximadamente 66% de sua receita na última década, ajustada pela inflação. Os editores enfrentam receita decrescente, os usuários se sentem cada vez mais violados e a capacidade dos anunciantes de avaliar a eficácia diminui. A solução é uma troca de anúncios digital descentralizada e transparente baseada na Blockchain. O primeiro componente é o Brave, um navegador rápido, de código aberto e focado na privacidade que bloqueia anúncios e rastreadores de terceiros e cria um sistema de contabilidade que mede a atenção do usuário para premiar os editores adequadamente. A Brave agora apresentará o BAT (Basic Attention Token), um token para uma troca de anúncios descentralizada. Compensa a atenção do usuário do navegador, protegendo a privacidade. O BAT conecta anunciantes, editores e usuários e é denominado pela atenção do usuário relevante, removendo os custos sociais e econômicos associados às redes de anúncios existentes, por exemplo, fraude, violações de privacidade e "malvertising". O BAT é um sistema de pagamento que recompensa e protege o usuário, oferecendo uma melhor conversão para os anun ciantes e maior rendimento para os editores. Vemos a BAT e as tecnologias associadas como parte futura dos padrões da Web, resolvendo o importante problema de monetizar o conteúdo do editor e, ao mesmo tempo, proteger a privacidade do usuário."

Essas três partes (usuários, editores e anunciantes) se conectam diretamente através de uma plataforma (o navegador da BAT) e a relação entre eles é mediada por micropagamentos utilizando-se o token da BAT. Usuários são recompensados por visualizar as propagandas ao mesmo tempo que podem recompensar os editores. Anunciantes podem ter uma resposta mais rápida do seu investimento e ter certeza que os cliques nas propagandas são realizadas por pessoas de fato interessadas em seus produtos, e não por bots cujo unico interesse é em aumentar a lucratividde dos editores via adsense. O BAT seria uma espécie de Google Adsense/Adwords sem o Google.

Se é verdade que a blockchain surge de uma cultura libertariana, de um liberalismo radical nos moldes norte-americanos, como os arquivos da lista cypherpunk parecem reforçar[8], é real que todas essas ideias, antes "undergrounds" (mesmo que vistas como a radicalização do status quo) e até mesmo contestatórias, agoras são reapropriadas pelos setores capitalistas que integram a industria de software. A blockchain está se infiltrando em todos os nichos e reformulando o sentido as formas hegemonicas de negócio na internet. Sendo a tecnologia algo que está em mudança de forma aceleradissima, e constante, o próprio descobrimento de novas ferramentas e a criação de novas soluções já são o suficientes para promover uma corrida em torno da adoção dessas. Nesse caso, as soluções de micropagamentos, de economias "decentralizadas" e de moedas pulverizadas parecem apontar uma nova tendência na internet: uma que nos distância cada vez mais daquelas ideias que norteavam a internet, de livre compartilhamento e de abundância, e nos aproxima cada vez mais de uma internet voltada para a criação de valor e da escassez.

 

[1] Segundo o escritor e pesquisador Ramus Fleischer, em um estudo sobre a fase beta do Spotify, que fazia uso de mp3 pirata retirado de sites como o ThePirate Bay, não é coincidência o fato de que "todo o período beta do Spotify e seu histórico de lançamento inicial estão em perfeita sincronia com oprocesso ao The Pirate Bay" - disponível em https://torrentfreak.com/spotifys-beta-used-pirate-mp3-files-some-from-p...
[2] https://exame.abril.com.br/tecnologia/netflix-tem-mais-procura-do-que-al...
[3] https://bunnytoken.com/data/BunnyToken_whitepaper.pdf
[4] https://gamestars.io/whitepaper
[5] Esse disurso foi feito durante uma palestra que presenciei em um curso interno sobre blockchain em uma empresa em que trabalhei. Não é de interesse darnomes aos bois, nem aos currais. O que importa no discurso é que os exemplos são amplamente utilizados em apresentações sobre a blockchain, justamenteporque apontam dois casos de 'sucesso' da "uberização". Podemos encontrar um discurso parecido com o que foi afirmado nesse artigo: https://medium.com/@kirilnachev/will-blockchain-put-companies-like-uber-...
[6] https://www.chasyr.com/
[7] https://basicattentiontoken.org/BasicAttentionTokenWhitePaper-4.pdf
[8] Os arquivos de e-mails da lista cypherpunk podem ser encontrados em https://mailing-list-archive.cryptoanarchy.wiki/

 

Grogue é estudante de ciência da computação. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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